Crítica | Sister Midnight (2025)

de Bruno Sant'Anna

Há um certo receio, ainda muito presente, quando o público se depara com filmes vindos de culturas distantes. A estranheza perante costumes, signos e formas de contar histórias diferentes pode tornar o primeiro contacto desafiante. No entanto, o poder da arte está precisamente em reduzir essas distâncias, em encontrar pontos de convergência entre realidades aparentemente opostas. Mesmo quando não deciframos todos os códigos culturais, conseguimos reconhecer o que está a ser dito, porque no centro dessas obras estão sempre as mesmas dores e tensões: desigualdade, opressão, desejo de liberdade e a procura por um lugar num mundo que insiste em negar pertencimento.

Mesmo tendo Mumbai como cenário, Sister Midnight, a primeira longa-metragem do realizador Karan Kandhari, constrói uma narrativa que combina elementos de terror, drama e comédia para retratar uma realidade ainda profundamente enraizada no quotidiano indiano: o machismo estrutural, os casamentos arranjados e a pobreza. Kandhari utiliza o absurdo e a fantasia como espelhos de um país em que as tradições continuam a definir o destino de muitos (sobretudo das mulheres) e onde a esperança surge, por vezes, apenas através da transgressão.

A história acompanha a vida de Uma (Radhika Apte) após o seu casamento com Gopal (Ashok Pathak) – uma relação sem qualquer traço de intimidade ou afeto. Sem interesse em consumar o matrimónio, o casal divide uma casa minúscula num bairro caótico e barulhento, onde o confinamento entre quatro paredes é tão sufocante quanto o mundo lá fora. Gopal refugia-se no trabalho e na bebida após o expediente, enquanto Uma tenta, sem sucesso, desempenhar o papel de dona de casa – consciente de que não tem vocação para isso. A meio de uma crise existencial, decide aceitar um trabalho noturno como empregada de limpeza, apenas para passar o mínimo de tempo possível com o marido. No entanto, à medida que os dias passam, Uma começa a adoecer e a transformar-se, percebendo gradualmente que se está a tornar numa figura sobrenatural bem conhecida: uma vampira.

O vampirismo já foi utilizado como metáfora em inúmeras obras: o medo do estrangeiro em Drácula (romance de Bram Stoker, publicado em 1897), a apropriação cultural em Sinners (2025), ou o humor decorrente do anacronismo em What We Do In The Shadows (2014). Em Sister Midnight, porém, o simbolismo ganha contornos mais complexos. Uma não é atacada por um vampiro, nem nasceu como tal: ela transforma-se gradualmente à medida que adoece, consumida pela vida sufocante do lar e pela exploração no trabalho. Essa metamorfose, no entanto, não é apenas física ou sombria: é também o seu processo de libertação, a única forma que encontra de se distinguir de todos à sua volta e escapar de uma realidade opressora, assumindo enfim o controlo do seu próprio destino.

Esse elemento de realismo fantástico encontra um tom particularmente interessante na narrativa, que poderia facilmente resvalar para um drama social melancólico. No entanto, o realizador insere um humor ácido – e genuinamente divertido – sem nunca diluir a crítica feroz a uma sociedade onde a pobreza e a tradição parecem sufocar qualquer noção de liberdade individual. Há, inclusive, sequências em que os animais mortos por Uma regressam à vida como criaturas animadas em stop motion, num estilo que remete a contos de fadas. Esse recurso, embora aparentemente dissonante, revela-se essencial para o nosso entendimento da história, conferindo-lhe um equilíbrio entre a fantasia e o poético que a torna ainda mais singular.

Tecnicamente, o filme é repleto de acertos, mesmo com as suas muitas decisões criativas ecléticas. As interpretações são afiadas e mutáveis (ora hiper-realistas, ora excessivamente teatrais ou mecânicas) mas sempre em sintonia com o ritmo da narrativa. A montagem, por sua vez, alterna entre planos longos e contemplativos e cortes rápidos, dinâmicos e quase lúdicos, num equilíbrio improvável entre o cinema europeu de tom dramático e a comédia cartoonish e energética de Edgar Wright.

No fim, Sister Midnight é um retrato vibrante e desconcertante de uma mulher que se transforma (literal e metaforicamente) para escapar à prisão do seu quotidiano. Karan Kandhari demonstra um domínio notável em equilibrar o grotesco e o poético, o riso e o desconforto, criando uma obra que transcende fronteiras culturais e fala diretamente sobre libertação, identidade e resistência. É uma daquelas histórias que, mesmo envoltas em fantasia, refletem verdades demasiado humanas. E, para quem procura algo divertido, excêntrico e fora do comum, é uma excelente escolha: uma mistura improvável de terror, sátira e encanto.

3.5/5
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