O prolífico realizador italiano Luca Guadagnino regressa ao grande ecrã com After The Hunt, um filme psicológico, complexo, dissimulado, e altamente atual que conta com um elenco de luxo liderado por Julia Roberts, ao lado de Andrew Garfield e Ayo Edebiri. Roberts é Alma, uma cotada professora de filosofia na Universidade de Yale. Garfield é Hank, o leal colega de Alma no mesmo departamento, e Edebiri é Maggie, uma aluna de ambos. O conflito narrativo surge quando Maggie acusa Hank de assédio sexual. Quando este nega o sucedido, Alma vê-se forçada a escolher um lado sem ter certezas sobre nada.
Sendo After The Hunt um filme principalmente preocupado com o conflito geracional entre Geração X, Millennials e Geração Z, não podia ter um casting mais perfeito. Roberts e Edebiri são basicamente o mesmo tipo de celebridade em décadas diferentes – girls next door acessíveis, genuínas, de gargalhada fácil e de uma beleza despreocupada. Já Garfield é o protótipo da estrela masculina progressista e atraente, mas de uma forma inofensiva.
Estas perceções extra-diegéticas informam e influenciam a interpretação do filme que parece, à medida que desenvolve as personagens e suas respectivas dinâmicas, piscar o olho às imagens públicas do seu elenco. Alma é a ídola de Maggie, na carreira, no estilo, nos comportamentos, refletindo a forma como Edebiri tem vindo a ser comparada a Roberts pelo público1. Já Hank utiliza o seu charme nato para flertar com e conquistar a confiança de ambas, desarmando-as com o seu comportamento algo desajeitado e boa aparência que, descobrimos mais tarde, escondem um lado negro da sua personalidade. Também Garfield é conhecido por ser uma espécie de hot nerd2 que foge aos moldes típicos do galã musculoso de Hollywood, usando essa imagem para seu benefício ao longo da sua carreira.
Roberts e a sua personagem representam a Geração X, já Edebiri e a sua personagem Maggie representam a Geração Z. A primeira, a dos anos ’90, nascida nos anos ’70/’80, é a primeira geração propriamente progressista e aparentemente igualitária da história dos Estados Unidos da América. A segunda, a do final dos anos 2010, nascida no final dos anos ’90 e nos anos 2000, é conhecida por ser altamente interventiva e crítica das gerações anteriores, ainda que, por vezes, fazendo-o de forma demasiado performativa.
Na perspetiva da Z, a X tinha todas as ferramentas para deixar aos jovens um mundo justo e resolvido, mas falhou. Para a X, a Z é composta por miúdos mimados que não aguentam qualquer contratempo e que procuram, à força toda, razões para se queixar. After The Hunt explora essa tensão, expondo esta atitude da geração X como um mecanismo de defesa para mascarar a vergonha ou desgosto perante o tal falhanço de que são acusados pelos mais novos. No meio, está a geração de Hank (e do ator que lhe dá vida), os chamados Millenials, que, ao invés de terem um conjunto próprio de características e causas, acabam por pedir emprestadas algumas de um lado e do outro. Uma geração definida por uma crise de identidade e uma falta de rumo, algo que Hank encarna por completo.
O filme, com argumento da estreante Nora Garrett, é inteligente na forma como utiliza o assédio sexual, no rescaldo do movimento #MeToo e em plena sociedade da pós-verdade e das identity politics, como dispositivo narrativo para retratar todas estas problemáticas. Mais inteligente ainda é o facto do conflito não se prender entre a vítima, Maggie, e o seu agressor, Hank, mas sim entre Maggie, enquanto protégée, e Alma, enquanto sua mentora. O que Hank faz a Maggie põe as duas mulheres, que antes eram aliadas na mesma batalha política e social, em lados opostos, expondo essa gigante fenda entre Z e X. Não é que Alma se posicione completamente contra Maggie, mas as réstias de dúvida que vai alimentando em relação ao seu relato dos acontecimentos, assim como a discordância sobre como lidar com a situação, vão, aos poucos, cavando esse fosso entre as duas.
Depois do tanto que se falou sobre esta temática nos últimos 8 anos, o uso do assédio sexual nesta história poderá parecer demasiado batido e até entediante. No entanto, não só é incrivelmente atual, como, enquanto crime, é especialmente ambíguo, prendendo-se muito com o “He Said/She Said” e sendo, por isso, difícil de provar. Dessa forma, é muito simbólico do momento pós-verdade em que vivemos, em que os factos são deturpados e transformados em meros pontos de vista e opiniões, em que não existe uma verdade objetiva, mas apenas interpretações individuais (e, posteriormente, colectivas) dos acontecimentos.
Acontece que essa ambiguidade é, coincidentemente, uma ótima motivação e enquadramento para uma história. E se há um mestre do cinema que prospere neste ambiente de dúvida e densidade psicológica é Guadagnino, como ficou bem provado em títulos como Challengers (2024), Queer (2024), e Bones and All (2022). Ao restringir o espectador, de forma quase exclusiva, ao ponto de vista de Alma, a incerteza que esta sente acaba por contagiar quem assiste. Tal como Alma, deixamos de saber quem está a dizer a verdade, recorrendo apenas ao nosso conhecimento pessoal sobre o mundo, e à forma como nele nos posicionamos enquanto atores políticos e sociais, para tirarmos as nossas próprias conclusões.
O mundo académico, com toda a sua história, mistério, e hierarquia, proporciona o cenário perfeito para este jogo de poder, identidade, e verdade. Guadagnino filma as salas de aula de uma forma austera e invasiva, contrapondo esse ambiente com a esfera pessoal das personagens, que é capturada de forma mais íntima e confortável. Quando as duas se cruzam, como quando Maggie visita a casa de Alma, ou Alma visita o escritório do reitor com quem mantém uma amizade próxima, é possível sentir a tensão entre as duas forças nos planos divididos e instáveis do realizador.
Voltando ao papel do assédio sexual enquanto inciting incident deste filme, podemos também refletir sobre o seu cariz enquanto luta, na sua avassaladora maioria, feminina, que obriga, por sua vez, a uma visão interseccional. O viés racial que prevalece na sociedade dá azo a que as queixas das mulheres negras sejam ainda mais desacreditadas e ignoradas que as das mulheres brancas3. Também estas diferenças sociopolíticas entre Alma e Maggie, que se vêm juntar às geracionais já mencionadas, problematizam a sua relação, dotando o filme de uma complexidade magnética e fascinante.
Depois de todo este atrito, surge, no último trecho, uma revelação que, não só explica os comportamentos de Alma, como acaba por reaproximá-la de Maggie. Uma vez que a protagonista não é particularmente adepta do modo de vida e de pensamento da Geração Z, também o filme adopta uma posição antagónica perante os mais novos. A reaproximação das duas mulheres no final esclarece que esse antagonismo era menos uma visão da argumentista e do realizador e mais um sintoma do storytelling subjetivo que o filme adopta. A eventual mudança de tom e substituição da oposição pela empatia acaba por salvar um filme que, durante quase toda a sua duração, se sente condescendente e pretensioso. Se não deixarmos que essa atitude nos desligue da história antecipadamente, acabamos por chegar à satisfatória conclusão de que essas falhas eram apenas passos necessários no percurso da protagonista.
Alma, enquanto representante da Geração X (que, aliás, poderá ver este filme e concordar com o antagonismo em vez de o detestar como esta escritora da Geração Z), precisava de desaprender algumas das suas convicções. Fica a esperança de que os espectadores que se relacionam com a protagonista também se permitam, a si mesmos, essa transformação.
After The Hunt é um exercício controverso mas, em última análise, certeiro, sobre a atuação das diferentes gerações na sociedade ocidental atual com todas as suas idiossincrasias. Não tem medo de explorar temas robustos e complicados como a verdade, o culto da personalidade, a violência sexual e patriarcal, o ridículo do ativismo performativo, e a inércia de quem perfere não fazer nada a fazer demasiado. Por tudo isto, é, também, um filme cerebral e frio, quiçá num reflexo do mundo científico e académico em que a sua história se insere. Os raros momentos de ternura acabam, assim, por serem os verdadeiros pontos altos. Também as personagens são difíceis de gostar, ainda que perfeitamente reais, com destaque para a prestação intensa, crua, e completamente dedicada de Roberts.
