Depois de Creed (2015) e Black Panther (2018), com Sinners, Ryan Coogler sagra-se, oficialmente, um dos redentores de Hollywood. O realizador de 38 anos veio para ficar, agitar o status quo, e entreter, em grande escala, no grande ecrã e com muito, muito estilo.
Após provar o seu talento à frente de megaproduções ligadas a dois dos mais populares franchises do cinema (Rocky e Marvel), Coogler traz um passion project original, faminto e cortante que certamente agradará até aos mais céticos. Mete seres mitológicos e sobrenaturais à mistura, sim, mas Sinners é muito mais que um filme de terror, menos interessado em assustar do que em explorar e expor as mais universais e basilares emoções humanas. Mais concretamente, a esperança, o medo, a fé, o amor, e a luxúria. Fá-lo duma forma completamente integrada com os seus motivos mais literais, como a música, a luta pela emancipação afroamericana, e os já mencionados vampiros.
Michael B. Jordan, a musa de Coogler, que integrou todos os filmes que realizou até à data, volta a liderar o elenco, desta vez em dose dupla, interpretando ambos os gémeos protagonistas, Smoke e Stack (apresentados como um package deal, os Smokestack Twins). Um mais rigoroso e sério, o outro mais boémio e impulsivo, regressam ao Delta de Mississippi em 1932, depois duma passagem pelas fileiras mafiosas de Al Capone em Chicago. Movidos pelos sonhos de infância, os dois decidem aplicar a fortuna adquirida, através de métodos pouco claros, na abertura de uma juke joint (os típicos bares ou centros comunitários afroamericanos do sul dos Estados Unidos onde se toca e ouve música, se dança, se bebe e se joga, entre outras variadas atividades). Para tal, empregam amigos e conhecidos para fornecer o entretenimento, a comida e bebida, o serviço e os materiais promocionais. Rapidamente o bar se torna num empreendimento familiar, juntando a comunidade local para uma noite de celebração da cultura e da liberdade que, durante a América de Jim Crow, flui, pelo menos, entre as quatro paredes daquela antiga serraria que os gémeos compraram, por uma generosa quantia, a um duvidoso indivíduo branco.
Pelo meio, vamos conhecendo os membros dessa comunidade, numa tapeçaria rica que Coogler tece com todo o amor, carinho e cuidado, refletindo as múltiplas vivências, crenças e ambições daquele lugar, naquela época, e entre aquele povo. Entre eles, interpretado pelo estreante Miles Caton, está o primo dos gémeos, Sammie, ou Preacherboy por ser filho do líder da igreja — um aspirante a músico, desejoso de crescer e romper com os constrangimentos da sua formação, que idolatra Smoke e Stack. Juntam-se, também, ao elenco, Wunmi Mosaku como Annie, o amor da vida de Smoke, e Hailee Steinfeld como Mary, o amor da vida de Stack — ambos romances que, com as suas particularidades e uma química única entre os atores, trazem outro vigor emotivo à já carregada história de Sinners. Nessa nota, é de apontar também a desinibição do filme, cada vez mais rara em Hollywood, na representação do desejo sexual, dotando cada participante de um poder e agência refrescantes. Assim, o sexo, em conjunto com a música e o oculto, representam as principais formas através das quais as personagens se entregam aos prazeres carnais, numa busca pela liberação e, consequentemente, pelo empoderamento, dando ao filme o seu título, Sinners.
Principal entre os pecados está a música, enquadrada, desde os primeiros minutos do filme, no folclore de várias culturas, como uma ponte entre a vida e a morte e entre o passado e o futuro. Surge, em Sinners, como o portal para o mundo sobrenatural, mas também como o elo que conecta as várias gerações na linha do tempo, dando-lhes uma continuidade fluída que, em tudo, se alinha com o modo de existência da comunidade afroamericana. Esta continuidade é especialmente evidente numa sequência que, sem qualquer dúvida, se tornará numa das mais memoráveis de 2025. Nela, usando o blues como ponto de partida, as raízes africanas unem-se aos conflitos, lutas e conquistas do povo negro ao longo da história dos Estados Unidos e à cultura inigualável que delas surgiu, tornando-se num pilar do pop mainstream desde o século XX até ao presente. Assim, Sinners não seria Sinners sem a inspirada e avassaladora banda sonora de Ludwig Göransson, o fiel colaborador de Coogler em toda a sua filmografia, cuja carreira começou na sitcom Community (2009–2015) e explodiu, em 2023, com o fenómeno Oppenheimer.
Mas a música é, sobretudo, o mais poderoso promotor da comunhão entre povos. Por isso mesmo, é particularmente cobiçada pelos seres de caninos aguçados — chefiados por Jack O’Connell numa prestação deliciosamente maléfica — que, a dada altura, invadem a festa do Club Juke dos Smokestack Twins, na busca de novos membros para o seu clã.
A partir daí, o filme assume uma nova identidade, evoluindo de um drama de época sobre família, lealdade e tensão racial, para um épico de ação sobrenatural com todo o sangue, lutas e momentos mic drop a que o género obriga. Posto isto, onde Sinners realmente triunfa é no modo como articula estas duas faces. Tudo parece intencional, com cada momento e cena contribuindo para o desenvolvimento e aludindo para o desfecho do filme como peças de um puzzle que dá gosto completar. É um filme que, na sua maioria, tirando um ou outro momento menos bem conseguido, preenche as medidas e acerta nas pulsações necessárias para fazer uma produção desta envergadura vibrar e saltar da tela, mesmo manipulando tantos elementos distintos simultaneamente.
A paixão de Coogler por esta história, elevada pela fotografia ampla e destemida de Autumn Durald Arkapaw, é evidente em cada plano, cena, e sequência. Sinners é especial pela sua habilidade de transformar conceitos familiares em algo maior, em serviço de um todo que é bem mais do que a soma das suas partes. Um conto visceral e apaixonado, mas também sensual e dinâmico que dialoga com o género popular do terror que, por sua vez, dialoga com o folclore e as tradições ancestrais que em tanto informam a experiência afroamericana. O resultado é uma sinergia cantante e dançante, tematicamente motivada, que proporciona 138 minutos de puro divertimento feito exclusivamente para a experiência escura e envolvente da sala de cinema.