Joker: Folie à Deux – Como uma Sequela pode ser Melhor e Pior em simultâneo

de Rafael Félix

Aviso: Esta análise contém spoilers.

A verdade é que Joker: Folie à Deux é um pior filme em praticamente todas as suas vertentes do que o seu antecessor. É também um filme muito superior a este mesmo antecessor.

Joker (2019), carregado às costas por Joaquin Phoenix, é solidamente construído, apesar de se sentir constantemente familiar com as suas referências inusitadas a filmes de Scorsese como Taxi Driver (1976) e, mais descaradamente, The King of Comedy (1982). Juntando o material de impressa de Todd Philips, que inúmeras vezes se lamentou “da morte da comédia” e voltou ao choradinho habitual dos comediantes modernos com o enjoativo “já não se pode dizer nada”, Philips tornou o seu filme, já de si com uma fanbase insuportável, uma prova clara de ser alguém com um sentido de importância profundamente descabido e que construiu um filme que, tudo por onde tocava, tornava bacoco e superficial. Os memes que circularam durante meses, após a estreia, a fazer pouco dos incels que viam na personagem de Arthur Fleck um símbolo, um exemplo, e que encontravam profundidade nas mais banais observações feitas pelo filme de Philips (“we live in a society” era a principal tese do filme como várias vezes foi observado) não eram exagerados, quando muito eram eufemismos. Uma crítica feliz no Letterboxd parece ter descrito a recepção a Joker perfeitamente, em meia dúzia de palavras: “se nunca nadaste no oceano, até uma piscina parece profunda”. É um filme que fala sobre o falhanço das instituições estatais, a sua inabilidade em proteger aqueles que mais delas precisam e o resultado do individualismo selvagem de uma sociedade pós-capitalista, mas que nada de interessante faz com eles, além de colocar uma personagem que reconhecemos de outras paragens, no ambiente que não costuma ser o seu.

Apesar deste casqueiro, Joker não é um mau filme. É simplesmente um filme que explodiu bem além da sua proporção (que incluiu o Melhor Filme em Veneza e Óscares para Phoenix e banda sonora) e que viu o seu fator irritante crescer desmedidamente devido à sua fanbase intragável.

Chegando a 2024, parece que, ao contrário do que aparentava, Todd Philips também não tem particular simpatia para com esta fatia do seu público, e a prova maior é, curiosamente, Folie à Deux.

A sequela parece fazer frente a esta posição. Parece opor-se à instrumentalização da imagem Arthur para provar um ponto, para ser um símbolo sobre o profundo falhanço das instituições. Philips e Scott Silver, com quem co-escreveu o argumento, olham para esta audiência olhos-nos-olhos e põe-lhes um espelho algo desconfortável à frente desta vez. Toda a narrativa de Folie à Deux é sobre a forma como o público pretende apropriar-se da imagem de Joker e roubá-la a Arthur, a imagem que Arthur criou na sua espiral de raiva e desequilíbrio que viria a culminar num assassinato ao vivo num talk show e gerou ondas de violência e protestos incessantes pela cidade, celebrando e proclamando Joker. Lá está. Joker. Não Arthur Fleck. Esse Arthur que está sentado no banco dos réus, em que toda a sua defesa instala-se na necessidade de o separar da personagem que criou, apresentando-os como personalidades diferentes. Todo o público pretende separar o símbolo de revolta social, do paciente desequilibrado e traumatizado que perpetuou os crimes, com ou sem maquilhagem. Nunca houve espaço para Arthur, apenas para Joker.

Nesse aspeto, Folie à Deux consegue ser ainda mais niilista que o seu antecessor, porque se nesse a personagem de Arthur ganha agência através de Joker, desta vez é arrastado para a realidade, sendo novamente violentado, abusado e vencido pelo sistema, instrumentalizado pelo público para justificar o seu desejo por carnificina e amado apenas, mesmo por Harley Quinn, pela personagem que criou. Joker e os seus fãs engoliram Arthur e cuspiram-no de volta ao mundo quando deixaram de ter necessidade dele. Tanto a forma como o filme abre, com uma animação estilo Looney Tunes em que a Sombra de Arthur toma o lugar dele na ribalta, como a forma como o final da sequela espelha o inicio do primeiro filme, com Arthur, frágil e violentado no chão, não deixam dúvidas sobre o que pensa Todd Philips sobre a personagem que criou, e se achava que grandes créditos não lhe deviam ser atribuídos por esta em 2019, a verdade é que o que trouxe em Folie à Deux mostra um outro tipo de maturidade que eu não esperava. Philips insistiu na press tour de Joker que, apesar do filme não mostrar particular empatia para com Arthur Fleck, que este sentia uma profunda empatia por ele. Desta vez o filme oferece-lhe efetivamente empatia, mesmo quando o esmaga à mais profunda insignificância, Arthur é humanizado além da sua persona de Joker. Quando este proclama perante o tribunal e câmaras de televisão que Joker não existe, que apenas existe Arthur Fleck, e que só ele é responsável pelos crimes que cometeu, o público desaparece. Na sua ótica, não há qualquer relevância num comum homem desequilibrado. Arthur volta a ser o que sempre foi: invisível. O ciclo é inquebrável e a sociedade está além de reparação. É por tudo um filme mais profundo, mais humano e mais relevante que o seu antecessor, só tem a infelicidade de ser pior.

A ideia de transformar esta fantasia num musical não só não é descabida como poderia ser brilhante. Ainda assim, nem com toda a boa vontade do mundo se podia dizer que a execução é um sucesso. A maioria dos números musicais variam entre atabalhoados e o mal pensados e quando estes são a coluna vertebral de um filme, vivem e morrem por eles e desta vez toda a execução de Folie à Deux sofre com a estrutura que escolheu para enquadrar um argumento que era infinitamente superior ao de Joker.

Caso caricato este. O pior dos dois filmes é também o único elemento que parece relevante analisar. É um filme que prova que, mesmo quando as suas fundações formais não resultam, aquilo que tem a dizer pode sobrepor-se à forma como foi apresentada.

Folie à Deux não é um desastre. É só uma belíssima ambição mal-executada. Não há mal nenhum nisso.

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