O Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival regressa a Lisboa para a sua 12ª edição, de 28 de Outubro a 6 de Novembro, espalhando-se por seis espaços culturais e exibindo 63 filmes realizados por mulheres de 29 países. Este ano, o mote “Semear Resistências. Cultivar Utopias” afirma-se como um gesto político e poético, convocando o cinema como ferramenta de transformação num mundo em convulsão.
Mais do que um festival, o Olhares do Mediterrâneo é um território de encontro e reflexão onde se cruzam histórias, geografias e olhares sobre o feminino, o social e o político. Do impacto das alterações climáticas ao cinema palestiniano, da memória das guerras balcânicas ao humor e à intimidade quotidiana, o festival continua fiel à sua missão: dar voz às mulheres do Mediterrâneo e desafiar fronteiras, sejam elas reais, simbólicas ou narrativas.
Nesta conversa, Sílvia Di Marco, co-directora artística do festival, fala sobre o poder do cinema como acto de resistência, o papel da utopia na criação e o desafio de fazer cultura em tempos de incerteza.
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Fio Condutor: O Olhares do Mediterrâneo regressa para a sua 12ª edição com o mote “Semear Resistências. Cultivar Utopias”. Como chegaram a este conceito e de que forma ele se traduz na programação deste ano?
Silvia Di Marco: No último ano, com o crescimento da extrema direita em todo o lado, a afirmação do discurso de ódio contra os imigrantes pobres e outros grupos desfavorecidos, a persistente indiferença dos governos ocidentais perante o genocídio em Gaza, a ideia de que é preciso “resistir” tornou-se um lugar comum entre as pessoas que acreditam numa sociedade aberta e justa. O coletivo que organiza os Olhares do Mediterrâneo sente isso muito profundamente. O mote surgiu espontaneamente, dando voz ao que sentimos: o Festival posiciona-se do lado da resistência e defende uma visão de sociedade aberta e justa, que neste momento parece uma utopia. Quanto à programação, o mote reflete-se nas histórias que escolhemos levar ao público. São histórias muito diferentes, de géneros cinematográficos diferentes, mas todas com uma faísca de rebelião e esperança.
FC: O termo “utopia” vem do grego ou-topos, “não-lugar” – um espaço ideal que ainda não existe, mas que imaginamos. Acham que o cinema pode ser a forma mais próxima de construir uma utopia, um espaço onde realidade e imaginação se encontram? E, para vocês, a utopia é um destino a alcançar ou um caminho que se percorre?
SDiM: A utopia é antes de mais um lugar político, no sentido de um lugar imaginário que se constrói coletivamente e que forma a base de um projeto de sociedade. O cinema, juntamente com a literatura e o teatro, enquanto espaços de criatividade e invenção, podem ser lugares de construção de utopias. Há muitas formas de fazer cinema e construir lugares que (ainda) não existem, é sem dúvida uma delas. No meu entender, a utopia é uma ideia inspiradora, um desejo, que vai mudando no tempo e segundo as circunstâncias históricas e sociais. É também um lugar de conflito, porque não existem projetos coletivos sem conflito. Por isso parece-me difícil dizer que a utopia é um destino. Talvez seja mesmo um caminho, ou até um método, uma forma de estar, de não aceitar os status quo das coisas, não aceitar que quem detém o poder decida o que é possível ou não.
FC: O festival exibe 63 filmes de 29 países, entre os quais 12 produções portuguesas. Numa altura em que o cinema nacional enfrenta tantas dificuldades, procuram deliberadamente dar mais espaço ao cinema feminino português ou esses encontros acontecem naturalmente?
SDiM: Aconteceu naturalmente. A maioria dos filmes programados são selecionados através de uma chamada internacional para filmes. Este ano recebemos mais filmes produzidos em Portugal, e muito naturalmente selecionamos mais.
FC: O Olhares do Mediterrâneo é o mais antigo festival de cinema no feminino em Portugal. O que mudou nestes 12 anos, seja no olhar sobre as mulheres realizadoras, na recepção do público e no vosso próprio percurso enquanto curadoras?
SDiM: Mudou muita coisa! Quando o Festival começou, em 2014, promover o cinema feito por mulheres em Portugal era uma novidade. Entretanto a luta pela igualdade de género tornou-se num tema “mainstream” um pouco por todo lado, e isto influencia também o cinema e os festivais. No caso dos Olhares do Mediterrâneo, isto teve um reflexo interessante em termos de público: o nosso público hoje é de pessoas mais novas comparando com as primeiras edições. Contudo, continua a ser maioritariamente feminino. O desafio agora é fazer compreender aos homens que os filmes feitos por mulheres não são filmes para mulheres. Em termos de curadoria, mantemos o mesmo enfoque de sempre, mas com mais atenção às realizadoras mais novas e à diversificação geográfica.
FC: Um dos temas proeminentes deste ano é o ambiente, destacamos por exemplo o workshop “Can Cinema Help Save the Planet?”. De que forma acham que o cinema pode realmente ajudar a salvar o planeta, ou, pelo menos, a mudar a forma como o olhamos?
SDiM: A percepção que os seres humanos têm do mundo é em larga parte determinada pelas narrativas que se constroem acerca dele. O cinema é muito poderoso na criação de imaginários. Penso, por exemplo, em todos os filmes sobre um possível apocalipse nuclear nos anos 80. Eu era uma criança na altura e lembro-me perfeitamente de como estes filmes, juntamente com os acontecimentos da época, nomeadamente o incidente de Chernobyl, determinaram a postura de duas gerações em relação ao nuclear. O cinema não pode salvar o planeta, mas pode contribuir de forma determinante à narrativa sobre o planeta e, por conseguinte, à nossa forma de actuar.
FC: Nesta edição, o festival apresenta uma mostra especial dedicada às cineastas Jasmila Žbanić e Mirjana Karanović, que revisitam a Guerra Civil Jugoslava e os traumas que dela persistem. Que importância tem, para vocês, trazer estas histórias de guerra e reconciliação ao público português? E de que forma o cinema continua a ser uma forma de resistência contra a violência e o esquecimento?
SDiM: A escolha da programação na Cinemateca surgiu antes de mais da vontade de explorar a cinematografia no feminino dos Balcãs. Ficamos intrigadas com a colaboração profissional entre Jasmila Žbanić e Mirjana Karanović, porque Jasmila é bósnia e Mirjana sérvia, ou seja, pertencem aos dois grupos étnicos que foram o cerne da Guerra Civil Jugoslava. Foi por isso que decidimos apresentar algumas obras delas baseadas nos acontecimentos da guerra. É uma forma de homenagear estas cineastas cuja colaboração é um testemunho concreto de como é possível recusar o discurso de ódio, a desumanização do “outro”. Apresentar o seus filmes é também um ato concreto contra o esquecimento. Quanto ao potencial do cinema como forma de resistência, é muito interessante observar como Esma’s Secret, dirigido por Jasmila Žbanić com Mirjana Karanović no papel de protagonista, e vencedor do Urso de Ouro na Berlinale de 2006, desempenhou um papel fundamental em fazer com que as vítimas de violação étnica fossem reconhecidas como vítimas de guerra.

Esma’s Secret, de Jasmila Žbanić
FC: A programação inclui ainda uma secção dedicada a famílias e público infantil. Como podemos impactar a audiência jovem e infantil a aprender e compreender o mundo que as rodeia? O que separa a inocência da consciência?
SDiM: As crianças são esponjas, absorvem o mundo à volta delas de mil formas e passam da inocência à consciência em situações inesperadas, que muitas vezes fogem à supervisão dos adultos. O Festival não quer “passar mensagens” às crianças, mas sim encorajar a curiosidade e abertura em relação ao mundo que nos rodeia. Apresentar filmes sobre temas muito diversos – desde as aventuras de um padeiro alérgico à farinha, na animação Baking with Boris, até às maquinações de uma menina palestiniana que quer oferecer a realização de um sonho ao avô, na curta-metragem Palestine Islands, parace-nos a forma melhor de atingir este objetivo.
FC: Este ano, o festival inclui também um programa de indústria, debates sobre acessibilidade e parcerias com associações como a MUTIM. Sentem que esta dimensão prática e política é tão essencial quanto a exibição de filmes?
SDiM: Sim. O Festival tem desde a sua primeira edição uma programação paralela intensa, com vários debates e workshops para o público em geral. Desde o ano passado começamos a sentir a necessidade de um programa de indústria que nos permita ter um impacto também no mundo da produção audiovisual. Neste sentido, a colaboração com a MUTIM, Associação de Mulheres Trabalhadoras da Imagem em Movimento é fundamental. Assim como o projeto de três anos “Olhares do Mediterrâneo with Eurimages for Equality”, financiado pela Eurimages, que nos permite realizar atividades que visam a combater os estereótipos de género e outras formas de discriminação na indústria cinematográfica, através de diversas atividades, que incluem mesas redondas e workshops de escrita cinematográfica.
FC: Esta edição cresce para dez dias e ocupa seis espaços da cidade. O que representa este crescimento para vocês? É um sinal de resistência, de maturidade, de necessidade de expansão ou uma combinação de tudo isto?
SDiM: É uma combinação disso tudo, e também um grande desafio logístico! Para poder realizar todas as atividades que quisemos programar precisávamos de mais dias e mais espaços. Estamos muito felizes por ter conseguido alcançar o nosso objetivo, mas confesso que é um esforço muito grande para uma equipa pequena como a nossa. Penso que há uma boa dose de resistência e alguma consciência da nossa parte!
FC: Tal como já reforçámos em entrevistas anteriores convosco, fazer um festival de cinema em Portugal, sobretudo com esta ambição e dimensão internacional, traz certamente desafios. Quais foram as maiores dificuldades, e também as maiores alegrias, especificamente na organização desta 12ª edição do Olhares do Mediterrâneo?
SDiM: As dificuldades continuam as mesmas, ligadas sobretudo à falta de financiamento. Este ano tivemos um financiamento do ICA, mas perdemos o da Câmara de Lisboa, que ainda não disse se nos vai apoiar financeiramente ou não. Na prática, considerando que falta menos de uma semana para o início do Festival, isso corresponde a um não. Isto nos obriga a ter uma equipa claramente subdimensionada em relação à dimensão e alcance do Festival e a fazer todo o trabalho de direção, coordenação e programação pro bono, o que, num festival que tem mais de dez anos, cria problemas graves de sustentabilidade. Por outro lado, há alegrias enormes, como saber que vamos acolher cerca de 30 convidadas, entre cineastas portuguesas e estrangeiras, e uma delas, se tudo correr bem, virá da Cisjordânia. Trata-se da Shaimaa Awawdeh, realizadora da curta documental This Home is Ours, que será exibida no sábado 1 de novembro de manhã. Ela obteve o visto, agora temos só de esperar que o checkpoint esteja aberto no dia em que terá de entrar na Jordânia para apanhar o voo em Amman.

This Home is Ours, de Shaimaa Awawdeh
FC: O Olhares tem mostrado ao longo dos anos que a cultura pode ser uma forma de resistência. No actual contexto global – com guerras, genocídios, crises, ameaças à democracia – qual é, para vocês, o papel de um festival como este?
SDiM: Ser um espaço de encontro e partilha que não tem medo nenhum de se assumir como um lugar de militância democrática e antifascista.
FC: E olhando para o futuro, o que gostariam que o Olhares do Mediterrâneo fosse daqui a 12 anos? Há alguma utopia pessoal ou colectiva que ainda sonham alcançar?
SDiM: Que um festival como os Olhares do Mediterrânei já não seja necessário! Que não seja preciso continuar a “promover” os filmes feitos por mulheres, porque elas já terão o espaço que merecem nas casas de produção, nas salas de cinema e nos festivais. Ter uma equipa grande e poder inventar novas formas de olhar do Mediterrâneo para o mundo, talvez construindo um novo espaço de formação e criação cinematográfica e artística.

