Confesso-me como um leigo na obra e vida de Natália Correia mas eternamente fascinado pela sua persona, maior que a vida. Lembro-me, em criança, de a ouvir discursar e falar na Assembleia da República. Ainda novo e com pouca experiência de vida mas, ainda assim, capaz de discernir a paixão avassaladora com que defendia as suas causas e de saber estar a vislumbrar alguém muito especial.
Natália Correia poderá, no entanto, ser o segredo mais bem (injustamente) guardado da poesia portuguesa. Pouco reconhecida em vida, a não ser nos seus últimos anos, carrega nos seus textos, e principalmente nos seus poemas, uma alma desassossegada e sempre em luta. Inconformada, por natureza, carrega nas suas palavras o espirito romântico e barroco, e nas suas rimas o surrealismo da sua alma. Meras palavras vazias deste aprendiz de poeta mas o filme ensaio A Mulher que Morreu de Pé presta o espectador a, também ele, ser poeta, como Natália.
Rosa Coutinho Cabral traz-nos, neste filme ensaio, a sua busca sobre quem é Natália Correia. Através de investigação, testemunhos de quem a conheceu e as causas que defendeu toda a vida, incorpora ainda, na narrativa, o processo criativo de uma peça teatral sobre a mulher por detrás da obra. Com a ajuda dos actores/actrizes, em pleno processo de casting, constroem, em conjunto, a sua versão da mulher por detrás do mito.
O primeiro aviso à navegação, como já devem ter deduzido pela sinopse, é que este documentário não usa a estrutura linear temporal. Há, aliás, numa cena inicial, uma provocação sobre a data e o local de nascimento da escritora narrado por uma voz-off masculina, que parece indicar que esse seria o caminho escolhido numa obra genérica. O clichê é, no entanto, posto em causa logo com a introdução de uma sósia de Natália, uma empregada de limpeza que circula pelos cenários do filme. Existem indicações temporais e históricas da sua vida mas a prioridade está em desconstruir Natália Correia, nas suas várias personas e, acima de tudo, nas suas palavras.
É aliás a palavra o centro e o coração deste inusitado mas intrigante filme. A própria realizadora aparece contaminada pelas suas palavras, tomando ela conta dos momentos de voz-off durante o resto da sua duração. Há aqui claramente um investimento pessoal tremendo de Rosa Coutinho Cabral, mostrando ela também o trabalho de bastidores mas igualmente a reflexão pessoal de como a obra de Natália Correia influenciou o seu percurso. Em várias cenas não se coíbe de mostrar a sua obsessão com a escritora, introduzindo cenas onde segue o “fantasma” de Natália, personificado nessa sósia, que a início parece incrédula com esse facto mas que parece absorver o que ouve sobre si e o incorpora na sua personalidade. Até, no final, se tornar unha e carne com a palavra e a mulher retratada, numa cena deslumbrante.
As personas conhecidas de Natália surgem através do processo de casting de uma peça de teatro, que não percebemos se é ficcionada ou não, e que adensa as leituras sobre Natália Correia. Cada um dos actores/actrizes apresenta-nos a versão escolhida para o/a representar tornando-se, também eles, participantes no retrato pintado da escritora. E nesta visão pessoal de cada um deles não há lugar para o preconceito ou para uma categorização fácil. Há lugar para o masculino, para o feminino, para o andrógino ou para um aglomerado de todos num ser único, bem exemplificativo do espírito livre de Natália. Uma acérrima defensora das liberdades sexuais de cada individuo, e anos-luz à frente do seu tempo, o que lhe valeu inúmeros inimigos e oposição feroz da sociedade. O termo feminista é desmontado pelas suas próprias palavras, preferindo sempre o termo feminismo, longe da dicotomia instalada de um sexo superior ao outro mas assente na complementaridade dos sexos, outra das suas lutas muito presente neste documentário. Uma luta acompanhada também pela sua defesa da cultura/arte e a sua promoção a todos os indivíduos como única maneira de atingir a verdadeira liberdade em Portugal, ponto que é repetido inúmeras vezes durante o documentário. São, aliás, as suas batalhas constantes por estes ideais referidos que acabam por revelar também os seus momentos mais sombrios e de maior fragilidade. Através de relatos de grandes amigos do passado e de imagens de arquivo, é dado a conhecer esse lado menos visível publicamente mas que sempre esteve explícito na sua obra literária e nos poemas que publicou. A narrativa acaba por ser mais forte por resultar de um espirito de equipa formidável entre todos os envolvidos, sejam a realizadora, os actores/actrizes e os que privaram com Natália, visivelmente empenhados em nos mostrar como a morte não a derrubou, e de como ainda hoje habita em todos nós, sempre de pé e combativa em defesa das suas paixões.
Existem fragilidades claras exclusivamente ao nível técnico, com descontinuidades em termos de edição, algumas imagens de arquivo de péssima qualidade, e ao nível do trabalho de luz, demasiado luminoso para a alma surrealista da obra de Natália, talvez a pedir um maior arrojo, que surge a espaços nos elementos ficcionais da peça teatral e no minimalismo desse espaço, mas que contrasta com o visual reminiscente de um documentário televisivo nos exteriores e nos espaços que Natália Correia habitou. Não há como negar da beleza da paisagem açoriana, do seu verde e da sua sumptuosidade natural, e que nos dá os melhores planos do filme, mas um maior trabalho a nível visual e sonoro teriam elevado o filme para o nível que as palavras de Natália merecem.
A Mulher que Morreu de Pé revela-nos a personalidade incontornável e a alma poética de um dos mais bem guardados segredos da história da poesia e prosa em Portugal e que urge redescobrir – Natália Correia. Com um pé na ficção e outro na realidade, como Natália sempre nos habituou, Rosa Coutinho Cabral viaja pelos locais onde ela se fez poeta e pelas palavras que perduram vivas bem para além da sua morte. Ora aí está um fantasma pelo qual, qualquer português que se preze, gostaria de ser assombrado.
Ps: Deixo-vos com um poema sobre o poema, perfeito exemplo do surrealismo e da complexidade da sua criação, sobre o qual este documentário se parece inspirar, na minha humilde opinião:
O poema não é o canto
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.
É o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.
Os acontecimentos são pedras
e a poesia trascendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.
E essa própria noção é só
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.
~

1 comentário
[…] autobiográfica e pela urgência de intervir no real. O seu mais recente filme, A Mulher que Morreu de Pé, surge no centenário do nascimento de Natália Correia e afirma-se como um ensaio […]