Flow (2024)

de João Iria

O sonho e o pesadelo de todos os que amam animais: observar seres adoráveis mas em constante perigo. Este é um filme que nos providencia um ataque de pânico e a sua cura. Flow irrompe pelo coração como uma nascente, mergulhando a nossa alma num baptismo apocalíptico e bombeando o nosso sangue com uma corrente de lágrimas, ansiedade e paixão, até atingirmos a sua foz de esperança. Similar a uma experiência espiritual, onde renascemos na sua conclusão com um novo corpo. Esta é a jornada de um gato solitário. Um gato à procura de resistir perante uma enchente monstruosa, encontrando refúgio num barco habitado por diferentes espécies, unidos por um instinto de sobrevivência. Para mentes ingénuas é uma viagem para um destino irremediavelmente cruel, todavia, o seu comandante demonstra apenas consciência da nossa realidade actual e do nosso possível amanhã.

Realizado por Gints Zilbalodis, esta longa-metragem de animação combina realismo animal com um ambiente fantasioso de natura, influenciado pelos backgrounds estrondosos e esverdeados dos mundos Ghibli e de animes clássicos como Future Boy Conan (1978), também uma narrativa sobre um mundo pós-apocalíptico esventrado pela maré, para explorar conceitos ambientais, as experiências de refugiados, a luta entre independência e conexão, e o poder da união face ao nosso futuro. É uma precipitação de ideias vultosas que usufruem de um véu de simplicidade para contar uma história profundamente emocional sobre encontrar comunidade num mundo destruído.

Regado com momentos doces, suficientes para derreter e caramelizar o nosso coração, banhado em cataratas de charme, e equipado com uma panóplia colorida de imagens igualmente devastadoras como inspiradoras, Flow arrisca numa aventura desprovida de falas, populada principalmente por sons animalescos – a narrativa é contada através dos seus poéticos visuais, da sua fantástica banda sonora e de miares, ladrares e seja o que for que uma capivara faz –, recusando-se a ser o equivalente de um laser para gatos, chaves para bebés ou minions para adultos no facebook, nunca condescendente, sempre com crença na paciência, atenção e respeito do seu público; sempre com crença na sua audiência.

Por este motivo, é uma longa-metragem completamente dependente da sua aptidão técnica, um elemento onde a sua equipa sucede formidavelmente, elaborando uma textura única na sua animação que recorda aguarelas – como se a existência das suas personagens estivesse permanentemente afectada por esta água que mancha as suas casas como as suas vidas –; o próprio enquadramento e movimento de “câmara” surge com um característico balanço entre instinto, reinado pelo presente sentimento, e reflexão, cuidadosamente desenvolvido durante a produção. É uma realização reminiscente do seu protagonista animal: cuidadosa, contudo audaciosa; carinhosa e amável mas prática e sensata.

Navegando entre compaixão e aflição como por montanhas, objectos luminosos e estátuas de animais cinzeladas por seres desaparecidos, Flow atravessa uma tempestade solitária para revelar um mundo literalmente isento de humanidade. Aliás, a única presença humana reside numa estátua e no estado físico deste ambiente. Uma nítida alegoria reflectida entre as ondas: a nossa imortalidade espelhada em casas, monumentos, figuras esculpidas e nas consequências planetárias. É assim que seremos eternos. No conforto, na arte, no ego e na destruição. Naturalmente, diante esta suposta extinção, uma dúvida domina as velas. Como sobreviver?

Para o cineasta da Letónia, esta é uma história acerca de superar o nosso individualismo; sobre um gato a aprender a trabalhar em equipa. Admitidamente uma concepção pessoal para Gints Zilbalodis, sendo esta a sua primeira obra produzida com uma equipa. “It’s kind of a story about making the film itself” mencionou o realizador numa entrevista. O nosso protagonista felino vive maioritariamente sozinho e pretende permanecer nesta independência mesmo diante perigos astronómicos. É mais fácil. Pelo menos, queremos acreditar que é mais fácil. Simultaneamente, é delineado um trajecto de co-dependência num dos seus companheiros, sistematicamente atrás dos seus supostos amigos ou líderes. Estamos constantemente à deriva do equilíbrio.

A sua conclusão serena e soturna sugere que a salvação de uns implica o fim de outros mas recorda que aceitar esta lamentável realidade nunca significa abandonar o nosso sentido de comunidade. Como as suas personagens, Flow comunica na sua própria língua, com a esperança que seja compreendida. O seu elenco felpudo comprova a necessidade de observar atenciosamente para ser possível perceber. Seja numa língua animal ou na linguagem cinemática, para sabermos o caminho, é exigido primeiro olharmos para o mundo como para o nosso reflexo.

4.5/5
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