Ainda Estou Aqui (2024)

de Rafael Félix

Walter Salles mergulha na autobiografia de Marcelo Rubens Paiva para apresentar a família Paiva e o seu cosmos familiar durante o início dos anos 70 e no auge da ditadura militar brasileira. Rubens Paiva foi um dos deputados brasileiros mencionados no Acto Institucional nº1 imposto pelo regime, atirando-o para o exílio e submetendo ao silêncio político o, agora, engenheiro civil. Em janeiro de 1971, Rubens Paiva (Selton Mello) é recolhido em casa pelo exército para prestar depoimento sobre hipotéticas ligações ao movimento pela redemocratização. Dois dias depois, Eunice (Fernanda Torres) e Elaina (Luiza Kozovski) são também levadas para um dos quartéis do Rio de Janeiro. Elaina volta para casa no dia seguinte. Eunice, cinco dias depois. Rubens Paiva nunca mais foi visto.

Salles, às costas de uma performance absolutamente inspiradora de Fernanda Torres, utiliza as dinâmicas familiares dos Paiva para expor os horrores da ditadura: os desaparecimentos, perseguições, a tortura – física e psicológica – dos cativos e dos seus, a insegurança, o medo. Tudo isto presente na primeira parte do filme, onde conhecemos o charme gigante de Selton Mello como Rubens Paiva e a devoção de Eunice Paiva ao marido, aos filhos e aos amigos. Salles vai com pressa durante este período. Somos presentados com jantares, festas, dança, música, beijos roubados, amores adolescentes. Erasmo Carlos, Gal Costa, Tim Maia enchem Ainda Estou Aqui, num misto de celebração, dor e resistência que vem da rádio e se sobrepõe às filmagens em Super 8 captadas pelas câmaras portáteis dos adolescentes Paiva, que captam a felicidade de viver e o calor familiar do Rio de Janeiro. O medo do regime está latente, todavia Salles parece afogá-lo no meio de um espaço familiar tão idílico que aparenta ser impermeável ao caos e violência do exterior.

Quando, inevitavelmente, a bolha deste paraíso é rebentada, com a captura de Rubens, Ainda Estou Aqui transforma-se. A falta deste é de tal forma palpável que o restante filme se assemelha a estarmos sentados a uma mesa onde existe um lugar vazio, com o prato posto e a cadeira puxada, numa esperançosa espera que esta acabe por ser preenchida pelo seu habitual ocupante. O terror do regime traduz-se em ausência. Da pessoa, de respostas, de justiça, de responsabilização. Esta é colmatada por Eunice, para a família, agora, transformada no único ganha-pão desta, uma responsabilidade captada no olhar de Fernanda Torres, quase sempre impenetrável e com uma força suprema. Aliás, o título escolhido por Walter Salles, Ainda Estou Aqui, inicialmente parecia referir-se a Rubens Paiva, numa simultânea ausência e presença trazida pelo seu paradeiro desconhecido, mas o tempo e a forma como a presença de Eunice Paiva se faz sentir após o desaparecimento do marido, recusando-se a deixar de viver, recomeçando tudo de novo, a sua vida e a dos seus filhos, mostra-nos que o título refere-se à recusa de Eunice de deixar de viver, a recusa da invisibilidade que a ditadura lhe queria impor.

Ainda Estou Aqui é sobre a resistência existencial de cada um, sobre a batalha individual perante a opressão, mais do que sobre o clima civilizacional do Brasil durante aquele período. A família Paiva é o centro do Universo do filme, com o seu óbvio privilégio socioeconómico, e lugar periférico na luta pela democracia. Num filme menor, podia-lhe ser apontado que a realidade deste núcleo não é, de todo, uma que represente a maioria do povo brasileiro durante aquele período, realidade essa marcada pela asfixia da liberdade e a privação, porém, Salles envolve-nos de tal forma nesta vivenda à beira da praia e nos seus ocupantes que fica claro que, apesar de existirem um sem número de histórias a contar sobre os heróis e vilões deste período negro da história do Brasil, a dos Paiva, e particularmente a de Eunice, é digna de ser imortalizada. Como foi.

Reforce-se que não se pretende julgar um filme por aquilo que ele não é. Há muito de belo em Ainda Estou Aqui para perder-se muito tempo a pensar naquilo que também podia ser. Salles e Torres enaltecem a resistência do espírito com momentos de terror e momentos de comunhão familiar de uma beleza extrema e não há forma mais nobre de enfrentar a opressão do que continuar a viver. Continuar a estar presente.

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