O primeiro Superman (1978) no cinema fez uma promessa: “vais acreditar que um homem consegue voar”. Assumo que tenha sido o caso, na altura ainda estava na Kryptonite do meu pai, contudo confirmo que na minha infância, eu acreditei. Décadas depois, com demasiados filmes desesperados por reconstruir este clássico ou por “tornar Kal-El numa personagem interessante”, o Homem do Amanhã regressa ao presente, marcando um novo (novamente) começo para o mundo cinemático da DC, agora reinado por James Gunn e Peter Safran. Similar ao seu herói protagonista: todos os olhos estão nesta longa-metragem, à espera de saber se finalmente podemos voltar a acreditar. A pressão seria suficiente para arruinar um Clark Kent mas, como sabemos, os óculos enganam. Posso afirmar que Superman é o segundo melhor filme desta franchise, o que, infelizmente, não é exactamente um feito extraordinário, tendo em conta que a sua competição não tem sido muito super. Aliás, anos de decepções e expectativas a borbulhar influenciaram a direção desta saga, pois enquanto Superman (1978) queria que a audiência acreditasse que um homem conseguia voar, este Superman de James Gunn está mais investido na aterragem do que no próprio voo.
Surpreendentemente, para um realizador e argumentista que revolucionou o subgénero de comic book movies com Guardians of the Galaxy (2014) – o único a criar uma trilogia consistente no MCU –, Superman é maioritariamente seguro e desprovido de riscos. É como se a visão CEO de James Gunn estivesse a afectar a sua criatividade. Admito que é estranho acusar este Homem de Aço de ser safe, afinal, o seu argumento inclui uma alusão ao genocídio na Palestina por Israel – retratados como Jarhanpur e Boravia (fiel às bandas desenhadas), respectivamente –, um conflito internacional que assinala literalmente o inicio do filme, pois o herdeiro do crepúsculo (David Corenswet), desinteressado nas intricadas conexões políticas do mundo, decide impedir uma invasão e salvar o povo de Jarhanpur, sem pedir permissão ao governo.
Agora, abatido e ferido pelo Martelo de Boravia, estendido no chão da Antártida e manchando a neve com o seu sangue, Superman aguarda pela assistência do seu selvagem e adorável cão, Krypto, para regressar à fortaleza da solidão, recuperar, e resgatar a sua Metropolis desta ameaça. Cansado de histórias de origem, Gunn introduz a narrativa in media res, revelando um planeta que vive com o Superman mas que parece ter esquecido do seu significado – comentando simultaneamente sobre a presente situação em Hollywood e a carência de empatia na nossa sociedade actual –, e um dos motivos para esta desconfiança num líder heróico e pelo estado destrutivo do mundo? Um bilionário careca envolvido em tecnologia. Aparentemente, não vivemos em universos assim tão diferentes. Lex Luthor (Nicholas Hoult), emprega o seu dinheiro para descobrir uma fraqueza melhor que a Kryptonita, manipulando os media, as redes sociais e as forças políticas enquanto investiga informações negativas sobre este imigrante alienígena, para o poder expulsar do seu espaço. Novamente, não vivemos em universos assim tão diferentes.
Gunn podia ter recorrido ao cliché e combater a malvadez de Luthor com um ser perfeito, contudo, Clark Kent está longe desta descrição. O argumento aponta para as suas falhas, para as dúvidas éticas e morais do seu trabalho como jornalista do Daily Planet, onde publica entrevistas secretas com Superman, justificando a sua impulsão com a sua necessidade de ajudar a humanidade, um aspecto que a sua namorada e colega, Lois Lane (Rachel Brosnahan), menciona durante um dos melhores momentos deste blockbuster, referindo também a sua atitude de nunca questionar as suas decisões. A conversa permanece consigo e Kent debate interiormente com a sua posição no Planeta Terra, com a sua identidade e o seu objectivo pessoal. Fica consigo mas não connosco porque repentinamente, é necessário elaborar um universo de bolso criado por Lex Luthor; apresentar o extenso elenco secundário, a relação entre Kal-El com os seus falecidos pais, preservados numa última mensagem visual; entre Clark Kent com os seus pais adoptivos, e ainda introduzir o Gangue da Justiça, com Guy Gardner (Nathan Fillion), um Lanterna Verde arrogante, Hawkgirl, interpretada por Isabela Merced e, a maior surpresa do filme, Mr. Terrific (Edi Gathegi), que invadem as batalhas com uma ideia de justiça oposta ao filho de Krypton.
Se parece demasiado é porque é demasiado para um super herói suportar, complicando o seu enredo desnecessariamente e colapsando com o fardo de diversas histórias paralelas e o pouco tempo investido no seu progresso e desenvolvimento. O ódio contra este ser alienígena, a sua associação com a humanidade, a ligeira desconexão no seu romance e nas suas raízes familiares, todos estes elementos fascinantes acabam por nunca impactar além do instante onde são exibidos pois carecem de verdadeiro peso dramático, ficando perdidos na execução. Até o seu final tocante flutua futilmente pelo ar, devido à necessidade do argumento de recorrer a atalhos para o seu destino; estabelece pontos intrigantes sem demonstrar o suor, o empenho ou um sentido de concretização nas suas vistas cénicas. O seu comentário social, as suas passagens satíricas, e o seu núcleo sentimental surgem com a velocidade do seu protagonista. Temos, assim, excelentes momentos individuais que nunca formam uma narrativa completamente coesa, criando uma penosa sensação de oportunidades desperdiçadas.
Esta fenda é também notada na sua técnica audiovisual. Com a excepção de alguns frames espectaculares, seja um apaixonante beijo ou uma devastadora conversa à janela, duas batalhas criativamente explosivas, uma fotografia dessaturada que salienta o vermelho e azul deste herói – a cor do mundo –, e uma banda sonora que, mesmo sendo excessivamente dependente do tema clássico, beneficia de guitarras eléctricas e sintetizadores para atribuir uma atmosfera Punk Rock (“a empatia é o verdadeiro Punk Rock”), a composição de imagem e a coreografia de actores e de edição ficam aquém do seu potencial, especialmente quando vemos as obras anteriores deste realizador e desvendamos quadros e figuras instantaneamente memoráveis e emocionalmente potentes. Compreendo que é injusto fazer estas comparações com longas-metragens vastamente diferentes, todavia, é impossível de evitar quando já experienciámos a melodia formosa desta voz e percebemos do que é capaz.
Superman é resgatado pelas performances do seu maravilhoso elenco e pelo design físico e psicológico das suas personagens principais; finalmente capturando o Super Homem perfeito, um que não avistamos desde Christopher Reeve. Corenswet presenteia um sorriso contagiante, sem deixar a bondade cair no exagero ou perder a sua humanidade. Ele grita, fica aborrecido, chateado e frustrado mas sempre com amor no seu coração, pelos seus próximos, desconhecidos, animais e até Kaijus. O seu carisma é a sua capa. Hoult diverte com um antagonista que realmente tem prazer e gosto em humilhar o Homem do Amanhã, manipulando as pessoas em seu redor com um olhar paternal e uma voz preocupada – ele só quer ter a certeza das intenções deste poderoso ser –, constantemente à beira de deixar escapar uma gargalhada durante as suas vitórias. Brosnahan cativa com uma performance ágil, oferecendo uma base lógica para a ingenuidade de Kent, e expondo simultaneamente uma química ardente com Corenswet e uma distância pragmática da sua paixão estilo conto de fadas. Sabendo o talento de James Gunn para esculpir interações entre personagens e dinâmicas de equipa, e testemunhando o casting extraordinário desta produção, a escassez de cenas entre esta tripla simplesmente entristece. São os melhores momentos do filme – claramente a história suplica por mais –, mas, por algum motivo, estes ínfimos diálogos são interrompidos para regressarmos ao universo de bolso e ao Gangue da Justiça.
Como mencionei, neste blockbuster a aterragem é mais importante do que o voo. Não existem sequelas nem um universo cinemático sem um primeiro sucesso e para o novo CEO da DC Studios, essa era a prioridade. Tenho pena porque é um filme encantador, com um ambiente reminiscente de clássicos cartoons puramente irresistível e um casting e construção de personagens impecável. Mas a sua ambição é a sua kryptonita. Um Super Homem perfeito num Superman imperfeito. Desapontante, contudo, confesso que, como o seu protagonista dita, todos erramos e procuramos aprender, melhorar e crescer. Continuar a tentar fazer o bem mesmo quando fracassamos faz parte de ser humano e “ser humano é o seu maior poder”.
Superman não tem medo das suas origens comic book, aliás veste o seu traje com orgulho no seu significado e na sua sentimentalidade. Ser um filme sobre o Super Homem, sem vergonha de ser um filme sobre o Super Homem, é o seu maior poder. Sacrifica visão e coesão mas eu consigo perdoar porque é uma história divertida, charmosa, agradável e, principalmente, porque sinto o seu coração a bater e acredito na sua mensagem de bondade em tempos turbulentos. Gunn vai ser sem duvida um grande Kevin Feige para a DC Studios mas espero sinceramente que não se esqueça da sua posição como artista. Acho que o que estou a dizer é que acredito mais no James Gunn do que no Superman. Afinal, acreditar nas pessoas, mesmo que apenas temporariamente, é mais importante do que acreditar que um homem consegue voar.