Crítica | Skinamarink (2022)

de João Iria

Na escuridão existe o infinito; um negrume que apaga a nossa existência e oculta completamente o mundo, tornando os seus habitantes nulos na noite. Uma imagem sem imagem que evoca o existencialismo. É nas profundezas, isentas de luz, que desvendamos o nosso maior medo: o desconhecido. É um receio que persegue as nossas mentes desde infância, que persiste em assombrar os nossos corpos desde o nosso nascimento até o momento em que enfrentamos o maior mistério das nossas vidas: a morte. O desconhecido é apenas uma recordação desta finalidade. A eterna escuridão. Quando fechar os olhos já não consegue ajudar-nos a escapar da noite.

Em 1999, The Blair Witch Project mudou o cinema de horror para sempre. Criativamente, foi uma obra que prometeu um futuro inédito, anteriormente impossível, para artistas. O subgénero found footage era agora uma entrada aberta para criadores sem experiência profissional e sem dinheiro, incentivados exclusivamente pela sua paixão. Apesar da sua fama fomentar negatividade na audiência, não é um exagero afirmar que esta longa-metragem representa um ponto transformativo na sétima arte pois o seu impacto persiste no presente. Em 2007, Paranormal Activity provocou uma resposta similar, com um orçamento diminuto e um conceito próximo deste clássico indie, atraindo um nível de atenção online absolutamente extraordinário, eventualmente despoletando uma franchise com cerca de 7 capítulos. Ainda assim, o filme de Oren Peli desapontou com uma história aborrecidamente convencional e derivativa; destacando-se exclusivamente pelas suas implicações audiovisuais – desfazendo a ilusão de ser necessário uma entrada para Hollywood, comprovando que esta arte consegue residir no reino da imaginação e numa simples DSLR. O seu sucesso permanece uma repetição de qualidade dúbia do colossal triunfo que ocorreu naquela floresta, antes do século XXI. O mesmo conceito mas menos interessante, audacioso e inovador. Skinamarink é a verdadeira evolução do género found footage. Um definitivo marco no cinema de horror.

Contrariamente a Paranormal Activity, esta criação de Kyle Edward Ball é – como The Blair Witch Project – revolucionária na sua originalidade narrativa, produzindo pesadelos absolutamente aterradores através dos seus inéditos métodos audiovisuais e estabelecendo a génese de um possível novo subgénero de terror. Contrariamente a Paranormal Activity, não vai haver nenhum Skinamarinky-Two, devido à medíocre resposta do público; a própria crítica revela uma espécie de “love it or hate it” como uma inevitável reação a esta estranha longa-metragem. Skinamarink é sensorial; uma experiência onde os seus elementos técnicos imperam sobre a história. Aliás, o audiovisual é a sua história. É um dos desafios mais entusiasmantes e fascinantes do cinema contemporâneo.

Duas crianças acordam sozinhas, durante a noite. O seu pai desapareceu. Iluminadas somente pela claridade da televisão e dos desenhos animados clássicos de domínio público que oferecem uma necessária companhia neste momento, a sala de estar transforma-se numa sala de espera pela sua figura paternal; pela futura salvação. As janelas e as portas desvanecem. Não existe saída. Uma estranha voz chama pelos irmãos. Come upstairs (venham cá acima).

Maioritariamente isento de diálogos, com ocasionais legendas para aproximar a audiência do seu áudio propositadamente imperceptível, Skinamarink (título retirado de uma canção de embalar) está mergulhado no negro, desesperadamente à procura de uma fonte de luz num espaço sombrio habitado apenas por ruído (sonoro e visual). A imagem granulada, desgastada e queimada, produz um efeito semelhante a um home video gravado numa camcorder, encontrado numa casa abandonada entre ramos partidos, musgo e destruição. Esta é a sensação dominante durante o percurso narrativo: abandono. Um filme experimental que captura a experiência tenebrosa de ser uma criança a acordar completamente sozinha, desamparada, e assustada numa casa que repentinamente se transforma numa prisão. Essa ansiedade infantil que nos persegue uma vida inteira até ao nosso envelhecimento, quando, por outros motivos, voltamos a sentir o medo de acordar sozinhos.

A primeira longa-metragem de Kyle Edward Ball é evidentemente inspirada por uma tendência corrente de shorts online acerca de espaços liminares e pelo seu projecto anterior, onde o cineasta dedicava-se a replicar cinematicamente os pesadelos da sua audiência, encontrando padrões idênticos nestas experiências partilhadas. O seu hipnótico ritmo, profundamente lento, absorve o espectador numa invulgar contradição de conforto desconfortável, embrulhados numa manta afetuosa, todavia embalados no obscuro. As suas personagens permanecem fisicamente ausentes, visíveis como pedaços de um puzzle humano; nunca sendo plenamente reveladas. A extraordinária composição de imagem restringe os frames a membros dos seus corpos como pernas, braços, costas, raramente rostos, elaborando um ambiente de impotência e infantilidade nesta aura sobrenatural. Similarmente, a casa é retratada visualmente como um ser, os seus órgãos capturados na câmara como pequenas secções de uma personagem: uma televisão; uma tomada; um canto; um ecrã. São imagens que salientam o medo no familiar, apresentando todos os pequenos pontos desta habitação para criar uma intimidade única com o seu espectador enquanto, simultaneamente, permanece distante, incompleta e misteriosa, suscitando constantemente um espectro de desequilíbrio e estranheza. Possuímos todos os seus pedaços mas nunca o corpo inteiro. Familiar, todavia desconhecido. Captando, assim, a aflição de acordar sozinho num universo solitário, quando a tranquilidade é revelada como um monstro; quando a inocência se transforma numa arma.

Skinamarink é intensamente perturbante, contudo é inflexível perante a sua audiência; exigindo que os seus espectadores se permitam ser embalados pelo seu pacing particular. Para uma pessoa impaciente, será uma obra extraordinariamente aborrecida. Até os seus jumpscares conseguem ser incrivelmente bizarros. É necessário que o seu público flutue neste mundo entre o sono e a realidade, por vontade própria. O incomparável design de som aterrorizante alude precisamente a esta atmosfera espiritual, como uma voz a ecoar perdidamente por um amplo corredor soturno, suplicando pacificamente pelos nossos passos. Neste preciso instante compreendemos que continuamos cativos perante um piscar de olhos quando o colossal negrume do vazio infeta a nossa imaginação e ressuscita os nossos maiores receios pessoais, confrontando o conforto da nostalgia com a ausência da existência. A escuridão é a protagonista de Skinamarink, todavia, o seu aspecto mais sinistro é a consciência que o escuro nunca é tão assustador quanto a luz, sobretudo quando esta confirma os nossos maiores medos.

4.5/5
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