Depois da Palma de Ouro em Cannes por Titane (2021), obra transgressiva sobre corpos, género e máquinas, e também do amplamente aclamado Raw (2016), metáfora para o amadurecimento, as expectativas não podiam estar mais altas para Julia Ducournau, realizadora que ocupa um papel de destaque no movimento New French Extremity, ao lado de nomes como Gaspar Noé, Catherine Breillat ou, mais recentemente, Coralie Fargeat.
Alpha transporta-nos para os anos ’90, no auge de uma epidemia sanguínea que gradualmente transforma as pessoas em mármore. A protagonista é Alpha (Mélissa Boros), uma rapariga de 13 anos que, num gesto de rebeldia, faz uma tatuagem com a letra “A” no braço, usando uma agulha partilhada com colegas. A mãe (Golshifteh Farahani), médica que cuida de doentes desta pandemia, reage com alarme à novidade, receando que a agulha pudesse estar infetada e tivesse transmitido a doença a Alpha. No meio disto, o tio toxicodependente de Alpha, Amir (Tahar Rahim), regressa às suas vidas depois de vários anos, agora infetado com a tal doença.
As metáforas com o vírus do HIV são evidentes, aproveitando alguma da pertinência trazida pela recente pandemia de COVID. O filme centra-se tanto na discriminação sofrida pelas pessoas infetadas, numa belíssima cena na piscina em que Alpha começa a sangrar e assusta os colegas da escola, como na paranoia de poder estar contaminado, ilustrada na sequência onírica em que Alpha é esmagada pelo próprio quarto. Para lidar com esta situação, Alpha recorre à ligação com o seu tio, que passa pelo mesmo, levando a outra das melhores cenas do filme, em que ambos saem à noite ao som de Nick Cave para desfrutar da vida. Como era de esperar, o body horror não fica de fora, surgindo principalmente nos corpos deformados pela doença, particularmente numa cena que vai deixar qualquer espectador arrepiado, até os menos sensíveis.
As atuações são o ponto mais sólido do filme: a novata Mélissa Boros impressiona pela entrega e pela forma como se relaciona com as restantes personagens, Golshifteh Farahani ancora a narrativa com uma empatia cansada e intensidade emocional, assustada com o risco de perder a filha e o irmão, e Tahar Rahim, após uma impressionante perda de peso, transmite não só o vício e o sofrimento causado pela doença, mas também uma vulnerabilidade profundamente ligada à sua resignação. Cinematograficamente, o suspeito do costume, Ruben Impens, brilha nas cenas mais impactantes já referidas, com efeitos especiais e maquilhagem sólidos para acentuar o body horror. As escolhas musicais são um pouco questionáveis, com um needle drop de Tame Impala a surgir num momento inoportuno.
Para além de abordar o impacto de uma pandemia mortal, o vício em drogas e até a questão da eutanásia, o filme assume também a forma de uma história de fantasmas, onde as personagens parecem assombradas pelos vestígios dos mortos, o luto e pelos traumas que deixaram. Isto manifesta-se especialmente na dualidade entre espaços temporais: o filme alterna entre momentos em que Alpha tem 5 anos e outros em que tem 13, mas com diferenças subtis entre ambos e até interligações, tornando difícil distinguir o que é real do que não é, um surrealismo que remete para o conterrâneo de Ducournau, Leos Carax.
A certa altura, o filme muda de tom e tudo se torna bastante confuso, e se um filme precisa de ser revisto para ser compreendido, normalmente não é bom sinal. Ainda assim, se aceitarmos não perceber tudo e simplesmente nos deixarmos levar pela experiência, o resultado funciona surpreendentemente bem. Ducournau assumiu este projeto como o seu trabalho mais profundo e pessoal (mais uma vez, as comparações a Carax são inevitáveis), e isso é claramente palpável. O body horror não é utilizado apenas para chocar, mas para nos fazer sentir a dor das personagens. As relações familiares, tão presentes nas suas obras anteriores, surgem aqui com ainda maior intensidade, tal como o retrato coming of age.
Alpha é um filme imperfeito, com uma narrativa algo confusa e por vezes desconexa, que nem sempre consegue desenvolver todos os seus temas com a profundidade que merecem. Mas a intensidade emocional e a sinceridade da obra mais pessoal da realizadora dificilmente deixarão alguém indiferente.