The Ugly Stepsister (2025)

de Pedro Ginja

Os contos de fadas têm a tendência a uniformizar a maldade. Existem apenas duas facções – os bons e os maus. Enquanto os protagonistas habitam num ambiente de injustiça, e onde a sua moralidade nunca é posta em causa, os vilões vivem num meio de privilégio e são demonizados a cada instante. É fácil de perceber por quem o espectador vai torcer e por quem vai desejar que tudo corra mal – a eterna vantagem do underdog. Emilie Blichfeldt, no entanto, não está interessada em seguir os trâmites habituais destas fábulas e faz do foco central da sua primeira longa-metragem – Den Stygge Stesøsteren (The Ugly Stepsister / A Meia-irmã Feia) – a meia-irmã da Cinderella, nesta sui generis adaptação do conto, também ele adaptado pela Disney, de histórias que remontam à Grécia Antiga.

Elvira (Lea Myren) muda-se com a mãe, Rebekka (Ane Dahl Torp), e a irmã Alma (Flo Fagerli) para a casa do seu padrasto, que vive com a sua filha Agnes (Thea Sofie Loch Nӕss). Pouco tempo após o casamento, o padrasto acaba por morrer e Rebekka passa a ser a guardiã da fortuna. Elvira é obcecada pelo príncipe do país onde habitam e, quando há um concurso em todo o país para escolher a mais bela do reino, não vai olhar a meios para vencer a sua meia-irmã, também apelidada de Cinderella.

Existe um sentimento forte de déjà-vu nesta adaptação do conto intemporal desde os primeiros segundos. Mas o ambiente de desconforto criado é igualmente marcante desde o primeiro sorriso de Elvira, muito em parte devido à energia nervosa que Lea Myren infunde no papel. Ao centrar a história numa das meias-irmãs, e que não segue os habituais padrões de vilania escolhidos nos contos de fadas, subverte as expectativas do espectador sobre por quem torcer para atingir o final feliz. O desespero crescente a que Emilie Blichfeldt sujeita a personagem de Elvira é uma tortura bem maior do que as dores, associadas à manutenção dos padrões de beleza, que inflige na pobre criatura. 

Esta dicotomia Dor vs Beleza atinge níveis difíceis de suportar para o mais sensível dos espectadores, mostrando explicitamente os sacrifícios necessários para vencer nesta vida. O fascínio pelo body horror, a nudez assumida e a decadência desta sociedade, presa a inatingíveis padrões de beleza, levantam muitas perguntas e dão respostas nem sempre fáceis de lidar. O comentário social encontra paralelos óbvios com a sociedade actual, com a constante pressão das redes sociais – aqui representado pela escola de beleza que prepara as mulheres do reino – ou a valorização da beleza exterior em detrimento dos nossos valores e sentimentos interiores, escondidos do olhar mas nunca do nosso coração. É bonito o paralelismo que estabelece com a saúde mental, em que a obtenção da beleza exterior traz também a perda da razão, a um pequeno passo da loucura. Lições que os jovens, reféns da ditadura de uma vida perfeita online, bem precisam de experienciar. No final, a beleza desvanece e ficamos na companhia do nosso interior – a mais dura e macabra das lições deste argumento de Emilie Blichfeldt.

O restante elenco contribui igualmente para este sentimento de um reino decadente, vazio de valores e refém do supérfluo. O mais próximo de um vilão acaba por ser Rebekka, a madrasta, que usa as filhas como “degrau” para subir na escada social. Ane Dahl Torp revela o desespero crescente, partilhado com Elvira, num rosto igualmente expressivo. Essa expressividade expande-se para a luxúria e a crueldade, com pequenos vislumbres subtis, mas bem elucidativos do seu enorme talento. Mesmo Agnes, a Cinderella desta história, interpretada por Thea Sofie Loch Nӕss não está imune à queda dos valores morais. Aqui não existem arautos da moralidade mas é igualmente humana na maneira como cede ao desejo e é capaz de tudo para ser a vencedora no final do dia. A falta de expressividade ou, quem sabe, opções do argumento, não lhe permitem revelar a luminosidade e a chama do desejo que o papel pede. As palavras gritam beleza, desejo e carisma mas o trabalho da sua personagem nunca o manifesta. Existem ainda inúmeras personagens secundárias com pouco tempo de ecrã mas sempre importantes no desenrolar da narrativa e dos sentimentos que o argumento de Emilie Blichfeldt quer priorizar.

O que manifesta com uma certeza total é o trabalho visual magnífico sobre todos os prismas. Como a sumptuosa e decadentemente austera cenografia, que liberta um travo de putrefacção duradouro, como aquele “cheiro” que sentimos quando entramos num local e algo parece estar morto mas nunca conseguimos descobrir exatamente de onde vem. Igualmente o trabalho de guarda-roupa e de maquilhagem é cuidado e atento ao pormenor, revelando um ambiente renascentista pristino que, ele próprio, se torna cada vez mais sujo e regado a salpicos de sangue, suor, lágrimas e sémen. Nenhum fluído de origem humana é ignorado neste argumento, isso posso garantir.

O design sonoro trabalha na ideia de sugestão do terror escondido no interior de cada uma das personagens. De serem descobertos pelo que realmente são, e não pelo que querem projectar para os outros. Escondem traumas, sugerem acções desprovidas de moral ou, simplesmente, movimentos mecânicos de perístase que escondem horrores inesperados e pouco vistos em cinema. Esse sentimento de ser constantemente surpreendido, com os níveis de tortura a que é sujeita Elvira, é exponenciado tanto pelo trabalho visual e sonoro como pela edição ora frenética, ora contemplativa do desconforto humano. A banda sonora partilha dessa pletora de emoções com música pop, clássica e electrónica, onde se misturam sons tribais, e se cultiva um ambiente onírico com pianos e sintetizadores, quase como um sonho mas bem mais próximo de um pesadelo. Cultiva-se ainda um lado industrial, mecânico e dissonante, nos momentos mais explicitamente intensos, particularmente interessante e original. Esses saltos constantes entre o clássico e o moderno mostram vontade de inovar, e apesar de nem sempre resultarem, contribuem enormemente para o sentimento de estarmos perante um talento que vai dar muito de falar no género de terror, de nome Vilde Tuv. Apesar de partilhar trabalho com John Erik Kaada, é a sua sonoridade que claramente se destaca, com os lampejos de flauta de pã, particularmente desconcertantes.

Com The Ugly Stepsister, Emilie Blichfeldt entra de rompante no universo do terror e estabelece assertivamente um talento maior para desconcertar o espectador. O cheiro a putrefacção liberta-se do ecrã e contamina o ambiente da sala com uma visceralidade que não envergonharia Julia Ducournau ou Coralie Fargeat. Mais uma vez, é bonito ver o terror made in Europe a vincar o pé com autoridade no panteão do terror global. A promessa de muito mais sangue, suor e lágrimas é uma certeza inabalável nos próximos tempos – haja coragem de manter os olhos bem abertos.

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