Le Procès du Chien (2024)

de Pedro Ginja

Os direitos dos animais estão no radar do mundo. Após os inúmeros abusos do passado em que, inclusive, um animal era considerado apenas propriedade ou “coisa”, no presente o seu papel continua a ser de enorme utilidade/apoio mas o seu estatuto, como um ser que sente e passível de ter direitos, é ainda muito deficitário nesse aspecto. Quando cumpre a sua obrigação/dever é elogiado e adorado mas quando, por alguma razão (nem sempre explicada), comete alguma agressão é imediatamente condenado, sem direito a julgamento ou protecção legal.

Le Procès du Chien, de Laetitia Dosch, encontra num caso real ocorrido na Suíça, a porta de entrada para discutir o tema da protecção animal. Avril (Laetitia Dosch) é uma advogada com o emprego em jogo após uma sucessão de derrotas em tribunal. Não consegue resistir aceitar o caso perdido de um cão, de nome Cosmos (Kodi), em risco de perder a vida após múltiplos ataques, quando este entra com Dariuch (François Damiens), o dono, desesperado por ajuda. Mesmo com uma ínfima probabilidade de o conseguir salvar da morte, vai usar todos os estratagemas para dar uma nova oportunidade a Cosmos neste mundo cruel.

Há um elemento de caos muito grande no primeiro filme de Laetitia Dosch atrás das câmaras. Designa-se, em primeira instância, como uma comédia mas acaba por pôr o pé em muitos outros géneros cinematográficos. Maioritariamente no drama mas existem pequenas passagens pelo thriller, terror, romance e mesmo acção. É natural, num momento, estarmos a rir com os diálogos entre Avril e o seu vizinho de 12 anos quando na seguinte cena está a entrar no seu apartamento, em fuga de violência doméstica por parte do seu pai. Existem inúmeras sub-histórias entre as personagens que habitam nesta adaptação de um caso real, mas é na maneira como integram o lado animal da equação, constantemente ignorado, que está a sua maior virtude.

Uma grande parte desse lado animal encontra-se em Cosmos, interpretado por Kodi, que sempre consegue ter a atenção e o respeito do espectador. Após o brilhante Messi, em Anatomie d’une Chute (2023), também aqui estamos na presença de um grande actor. Intenso, tanto nos momentos emocionais, de brincadeira mas também de diálogo com Avril. Não o digo de maneira leviana, pois sente-se mesmo uma comunicação aberta entre a personagem de Laetitia Dosch, também ela em busca de encontrar o seu lado animal e de se libertar de amarras auto-impostas, e Cosmos, tentando fazer-se entender perante o menosprezo da sua vontade. De momentos de tensão, passando pela tristeza do afastamento do dono, até a agressividade sem limites quando provocado para tal. É estranho dizer que um cão possa ter um excelente timing cómico mas é isso que sentimos com Kodi, quando encarna a persona de Cosmos, sempre no sítio certo e com a reacção perfeita. Pode-se dizer ser fruto de edição, de um excelente treinador (do qual não duvidamos que seja) mas assim como no caso de Messi, sente-se uma aura de estrela a emanar de Kodi.

A Avril, de Laetitia Dosch, partilha da mesma energia do seu companheiro de quatro patas. Há uma estranheza familiar na maneira como constrói a sua advogada das causas perdidas, também ela igualmente desligada dos seus desejos primordiais. Surge anestesiada perante os seus superiores, com medo de mostrar o seu verdadeiro eu. A viagem de descoberta tem momentos difíceis de aceitar numa sociedade civilizada, desejosa de esquecer o lado animal que todos partilhamos. É uma interpretação portentosamente caótica, nem sempre perfeita mas sempre com as emoções à flor da pele.

O aspecto social, do considerado aceitável, é constantemente posto em causa, colocando a vivência do espectador, na vida real, em cheque. Há verdades complicadas de aceitar, sentimentos partilhados que saem das normas da sociedade, sem julgamento de qualquer forma. A certa altura fala-se de misoginia, pois Cosmos morde apenas mulheres, e o momento cómico resulta. Mas abre também uma caixa de Pandora, colocando igualmente os direitos das mulheres na discussão do argumento. Como se tantos assuntos discutidos não bastassem ainda se acrescenta um lado político vincado onde os extremismos são colocados à vista de todos, personificado na advogada de acusação Roseline, interpretada com pujança por Anne Dorval, histriónica, barulhenta e sempre com o dedo acusatório apontado à diferença. Parece-vos familiar?

Anabela Moreira, no papel de Lorene, é a vítima de Cosmos, a cara desfigurada pelo ataque. Representa o clichê da imigrante portuguesa, empregada de limpeza, em busca de uma vida melhor. O termo clichê não é aplicado como crítica porque Anabela Moreira, no pouco tempo em cena e quase sempre com o rosto oculto, consegue criar uma mulher real, com as suas limitações e qualidades.

Em termos cinematográficos, para além do argumento, há muito poucos elementos de interesse. Visualmente é desapontante, nunca usando o cinema para contar a sua história, e em termos de design sonoro é uma absoluta confusão com o som tão caótico como as causas que defende. A banda sonora escolhida é apropriada, com ênfase no rock-n-roll que funciona bem no lado cómico da narrativa mas não é tão apropriado para o lado de suspense que procura incutir na história. São esses inúmeros géneros cinematográficos misturados que acabam por retirar qualquer identidade musical, onde a máxima de agradar a gregos e a troianos nunca se aplica.

Le Procès du Chien é um filme de causas múltiplas e determinado em colocar o dedo na ferida em relação aos direitos animais. O constante ambiente combativo, de disparar em todas as direcções, acaba por dispersar demasiado a atenção do objectivo primordial mas a entrada em cena de mais um excelente cão actor, Kodi, e uma interpretação exuberante de Laetitia Dosch salvam o filme.

3/5
0 comentário
1

Related News

Deixa Um Comentário