Crítica | O Filho de Mil Homens (2025)

de Bruno Sant'Anna

O conceito de família tem mudado de forma profunda ao longo dos últimos anos, afastando-se da ideia rígida de que pais e filhos devem reproduzir expectativas herdadas, obrigações morais ou modelos impostos pela religião e pela tradição. Hoje, compreendemos cada vez melhor que o afecto não se sustenta na pressão e que transformar os filhos em depósitos de frustrações apenas fragiliza os laços que deveriam proteger. Quando o preconceito, a vergonha ou a imposição de um destino específico entram pela porta de casa, aquilo que deveria ser um lugar de acolhimento torna-se um espaço de medo, opressão e silêncio. E é precisamente nesta transformação social, neste deslocamento do que entendemos por pertença, que novas narrativas começam a ganhar força.

A ideia de família como algo que ultrapassa o sangue tem surgido com vigor no cinema contemporâneo. No Brasil, filmes como Tatuagem(2013) e Mãe Só Há Uma (2016) exploram essa reinvenção dos vínculos, seja através da criação de laços escolhidos, seja pela redescoberta de identidades que desafiam estruturas tradicionais. No Japão, Hirokazu Koreeda tem construído uma parte da sua filmografia dedicada a este olhar sensível sobre pertença, com obras como Shoplifters(2018) e Monster(2023), que investigam as brechas onde o afecto floresce mesmo em situações instáveis ou marginais. É neste contexto que surge O Filho de Mil Homens, realizado por Daniel Rezende e baseado no livro homónimo de Valter Hugo Mãe, reafirmando a força destas narrativas que questionam o que significa realmente fazer parte de uma família.

No centro da narrativa está uma pequena aldeia costeira marcada por tradições rígidas, onde o conservadorismo e o preconceito vão afastando as pessoas umas das outras até que muitas acabam isoladas, carregando dores que não escolheram. Entre elas está Crisóstomo (Rodrigo Santoro), um pescador que enfrenta a angústia de chegar aos 40 anos sem realizar o sonho de ser pai; Camilo (Miguel Martines), um menino que perde o avô e descobre que já não resta ninguém ao seu lado; Antonino (Johnny Massaro), jovem que sofre violência dentro e fora de casa por ser homossexual; e Isaura (Rebeca Jamir), aprisionada pelas instabilidades emocionais e pelo controlo sufocante da mãe. São personagens que carregam ausências profundas, todos orbitando em torno da mesma questão: o que acontece quando a família que temos deixa de ser um lugar seguro?

À medida que a narrativa avança, estas personagens começam a cruzar-se e a descobrir uns nos outros, os remendos possíveis para as suas feridas mais íntimas. O afecto que falta em alguém surge no gesto de outro e, pouco a pouco, percebem que aquilo que a sociedade sempre apontou como falha ou desvio é precisamente o que os torna singulares, íntegros e dignos de amor. O título do filme nasce desse entendimento. Ninguém é formado apenas pelos pais que nos criam. Somos atravessados por encontros, ideias, cuidados e ausências de inúmeras pessoas ao longo da vida, e é nesse mosaico de influências que definimos quem somos e quem desejamos ser.

A parte técnica do filme reforça essa ideia de transformação e descoberta. A fotografia privilegia a profundidade dos cenários, revelando camadas desta aldeia que carregam significados silenciosos, muitas vezes imperceptíveis para quem não conhece aquele mundo. Há também um trabalho cuidadoso com os enquadramentos. No início, tanto os planos gerais como os planos muito fechados sublinham a solidão, o abandono e a sensação de vazio que atravessa estas personagens. Com o desenrolar da narrativa, porém, os planos fechados passam a capturar detalhes íntimos, reveladores, enquanto os planos abertos deixam de ser espaços desabitados e passam a estar preenchidos de presença, ligação e possibilidade.

O Filho de Mil Homens revela-se uma obra profundamente humana, que olha para as feridas invisíveis deixadas pelo preconceito e pela solidão e as transforma em espaço de encontro, afecto e reinvenção. É um filme que nos lembra que família não é um destino pré-determinado, mas uma construção contínua feita de escolhas, desvios e acolhimentos inesperados. Embora tenha sido lançado directamente na Netflix, trata-se de uma história que merecia ser vivida no grande ecrã, com o tempo, a textura e a imersão que o cinema proporciona. Ainda assim, independentemente do formato, permanece como um daqueles filmes que ficam connosco depois de terminarem, convidando-nos a pensar sobre quem somos, de onde vimos e a quem, afinal, escolhemos chamar família.

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