Crítica | Late Shift (2025)

de Pedro Ginja

É o início do turno de mais um dia de trabalho para Floria (Leonie Benesch), uma enfermeira prestes a entrar ao serviço num hospital de Zurique. Este encontra-se com uma tremenda falta de mão-de-obra, fruto da crise global de enfermeiros qualificados, o que torna cada acção, e solicitação urgente, inevitalmente carregada de stress adicional. Será hoje o dia em que Floria atingirá ao seu limite?

É uma premissa extremamente simples mas este não é, de todo, um filme básico. Num panorama televisivo carregado de opções na área da saúde, seja na medicina ou na enfermagem, para o cinema as opções nunca são directamente associadas à realidade de um serviço de saúde. Ora são cenário num filme de terror onde o monstro, o assassino ou o espirito vingador espalham o medo, ora são o palco para um drama, onde o protagonista/familiar tem o final que merece, seja este alegre ou triste. Sempre um local de passagem ou melhor de fugida, para outros ambientes mais convidativos. A opção pelo universo televisivo faz sentido, pois temos tempo para conhecer os heróis que salvam vidas e os doentes que anseiam a cura, ao longo de vários episódios. No argumento de Petra Volpe a urgência é outra, pois existem apenas 91 minutos para conectarmo-nos com Floria.

Caímos praticamente de paraquedas nesta vida, acompanhando a chegada de uma enfermeira ao local de trabalho, sem conhecer nada do que a move. O olhar carregado, olheiras bem visíveis e um caminhar ritmado, fruto da urgência, mas incerto, estabelece, desde logo, um sentimento de desgraça eminente. Uma panela de pressão que a cada interacção de Floria, com colegas, doentes, familiares e médicos, aumenta o seu barulho e a tensão para níveis de difícil contenção. O argumento consegue um equilíbrio interessante entre drama, thriller e, inclusive, alguns momentos de comédia que nos surpreendem quando menos esperamos. Não por ser usado para aliviar a tensão galopante da narrativa mas porque humaniza Floria ainda mais, factor essencial para sustentar um filme com esta dimensão. Também há espaço para pequenos momentos de ternura e compaixão para Leonie Benesch nos encantar, o que acaba por desarmar ainda mais o espectador neste ambiente labiríntico de corredores azuis, onde os medos e anseios aparentam estar ao virar de cada esquina.

Leonie Benesch entrou no radar de todos com The Teachers’ Lounge (2023), onde o ensino tomava o papel principal, com uma interpretação fenomenal e foi por isso muito inteligente a sua escolha para este papel. Ambos os filmes partilham uma dependência extrema do intérprete principal pois se o espectador não estiver na jornada com ela, a história nunca poderia funcionar. Esta é uma actriz com quem queremos estar, seja nos bons ou nos maus momentos, e com um range emocional absolutamente extraordinário. Nada é histriónico ou exagerado nas reacções mais extremas e a contenção e a inteligência, nas opções tomadas para o papel, parecem sempre ser as mais acertadas. No início privilegia os trejeitos visuais e a sugestão revelada por olhares vazios, suspiros ou interjeições curtas para o que quer transmitir. Quando a tensão explode, é acutilante e sempre determinada em defender a sua personagem, a raiva cresce mas nunca para um lugar utópico. Aí é o argumento que sabe pôr travão nesse escalar, criando as quebras de tensão necessárias para os momentos de catarse de Floria, imprescindíveis para um equilíbrio da narrativa. Esta Floria, de Leonie Benesch, é acima de tudo um ser humano bonito, a fazer o melhor que pode e sabe pelo próximo. E como sabemos, infelizmente, nem sempre isso chega para sermos totalmente compreendidos pelo outro.

Pena então que a nível técnico seja um deserto de ideias onde por vezes vemos alguns vislumbres de querer quebrar a barreira do mediano, mas tal nunca acontece. A preponderância de câmara de mão, sempre atrás de Floria, leva-nos para as trincheiras com a nossa heroína mas afasta-nos de sentir com ela. Conseguimos apenas quando o argumento o permite, pelo que é dito ou inferido, mas nunca pelo que vemos ou pelo uso inteligente da edição. Quando comparado com o panorama actual de dramas hospitalares na televisão, exímios nesse bailado frenético na mesa de edição, surge monocórdico e repetitivo nas respostas, nunca encontrando soluções que nos permitam sentir ainda mais a urgência perante cada situação limite ou mesmo de uma mera compressão cardíaca. Um dos momentos que melhor exemplifica a injustiça, perante a profunda empatia de Floria, acaba com Floria de joelhos à procura de um relógio, de grande valor, de noite e no exterior com apenas uma câmara fixa apontada a uma colina verde. É muito pobre para o que esta história merecia.

Petra Biondina Volpe retrata um dos mais menosprezados heróis/heroínas do mundo actual, o enfermeiro/a. Fá-lo, no feminino, com sensibilidade, humanismo e um profundo sentimento de dever cumprido no modo como nos apresenta uma dessas anónimas mulheres na área da saúde – Floria. Leonie Benesch é extraordinária e merecia o mundo por tudo o que nos faz sentir por este ser humano. Se és enfermeira/o não deves querer ver novamente o que já vês todos os dias. Para todos os restantes é serviço público para evitar aquela boca foleira que te passa pela cabeça quando estás no hospital e te sentes injustiçado.

3.5/5
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