Crítica | Bugonia (2025)

de Cesar de Lima e Silva

A palavra “Bugonia” refere-se a um ritual de antigos povos do Mediterrâneo que acreditavam que as abelhas podiam surgir espontaneamente a partir da carcaça de um boi, sacrificado e deixado a decompor-se. Dessa “alquimia” nasceria o mel, dourado como o sol e símbolo de fertilidade e de perspetiva de colheitas abundantes. Tudo isto, claro, se se mantiverem os olhos bem abertos para o urso e para o apetite que ele tem pelas colmeias. Daí que, além do boi, importe sacrificar o urso – como na tradição da aldeia rural de Midsommar (2019). Pelo menos um plano com Emma Stone faz referência direta a esse filme, realizado por Ari Aster, produtor de Bugonia.

A semelhança entre os dois filmes fica por aí – e no facto de haver um conjunto de crenças nada científico que movimenta tanto os habitantes da aldeia onde ocorre o festival do solstício de verão, como Teddy (Jesse Plemons), que, em Bugonia, arrasta o seu limitado primo Don (Aidan Delbis) para raptar a desumana executiva de uma grande indústria química, Michelle (Emma Stone). Teddy é produtor de mel e está convencido de que Michelle é uma alienígena à frente de um plano para fazer desaparecer as abelhas, impedir a polinização e escravizar a humanidade. A partir do rapto, o filme desenvolve-se em sequências de grande suspense: até onde Teddy será capaz de ir, e o que poderá Michelle fazer para se safar da acusação de ser uma conspiradora vinda de Andrómeda?

Emma Stone apresenta mais uma grande interpretação, mas é Jesse Plemons quem usa toda a loucura da sua personagem para saltar do ecrã e arregalar-nos os olhos para o facto de que há gente como ele por todo o lado. Sempre houve, mas a internet permitiu que soubessem que não estavam sós: há pessoas com crenças semelhantes e, agora, podem reunir-se nas suas “aldeias” virtuais. Nomeado uma vez ao Óscar de Melhor Ator Secundário por The Power of the Dog (2021), não surpreenderá se Plemons voltar a ser lembrado para concorrer com astros como Leonardo DiCaprio, por One Battle After Another (2025), e Joaquin Phoenix, por Eddington (2025).

O realizador Yorgos Lanthimos é mestre em tornar verosímil o inverosímil – quer num mundo fantástico como o de Poor Things (2023), quer nas situações e diálogos que causam estranheza, como em The Lobster (2015) ou The Killing of a Sacred Deer (2017). Nunca é explicado como é que as pessoas se transformam em animais, no primeiro, nem o que leva a família do cirurgião a adoecer, no segundo. Esse desconhecido só acrescenta estranheza às já absurdas premissas que movem as histórias. Se há uma falha em Bugonia, é quebrar esse encantamento e explicar a “mágica”. Ao abandonar o desconhecido para expor as motivações por detrás das ações de Teddy, o filme perde a grandiosidade quase operática – como as bandas sonoras a que Lanthimos costuma recorrer – e, por momentos, descai para um melodrama novelesco. Assim, o realizador perde a oportunidade de assinar mais uma obra-prima.

Percebe-se o melodrama por fidelidade ao original, uma vez que Bugonia é um remake do sul-coreano Save the Green Planet! (2003) de Jang Joon-hwan. A opção, contudo, traduz-se numa certa infidelidade ao estilo do realizador e não se justifica se atentarmos em como o original é bastante diferente. Mesmo o género do filme coreano não é o suspense, mas antes uma comédia policial com forte apelo juvenil, inclusive em alguns recursos de linguagem próximos da banda desenhada. Esta foi a primeira vez que Lanthimos refez um original alheio, mas, apesar do desvio, consegue deixar a marca da sua filmografia numa obra pensada para adultos – o que torna muito interessante o exercício de ver os dois filmes: como é possível, a partir de uma mesma história, com estrutura muito semelhante, produzir emoções tão diferentes?

Contribui também para isso o facto do protagonista do filme coreano ser hoje em dia ainda mais atual: um representante perfeito da vaga de terraplanistas e conspiracionistas que assola a internet. Há vídeos com milhões de visualizações de quem acredita que a Terra é plana, que o homem não foi à Lua, ou que existe, de facto, um leprechaun – o duende da mitologia irlandesa que estampa o escudo dos Boston Celtics. Nesse sentido, a história clamava por ser adaptada e, com absurdos tão latentes, talvez não houvesse escolha mais certeira para estar à frente deste trabalho do que Yorgos Lanthimos.

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