O silêncio adquire, com a sua repetição, uma força para além do suposto. O preenchimento desse vazio actua como um catalizador de consumação obrigatória. Como se, a cada segundo que passa, a nossa humanidade se evaporasse e ficassem apenas os fantasmas e os traumas logo ali à superfície. A humanidade é constantemente associada à nossa habilidade de socialização e de empatia com quem nos rodeia, e marca com ferro e fogo quem foge da norma e ousa ser diferente.
Benoît Jacquot explora em Belle (A Morte de Belle) como o silêncio e a solidão auto-imposta de Pierre (Guillaume Canet), numa vida sossegada e feliz com a sua esposa Cléa (Charlotte Gainsbourg) e Belle, uma jovem que acolhe em sua casa, o transforma de cidadão respeitado na comunidade, em principal, e único, suspeito do homicídio de Belle, quando esta aparece morta no seu próprio quarto. Inimigo público número um, num abrir e fechar de olhos.
É pouco usual iniciar a história com um homicídio, mas é assim que o seu realizador introduz o espectador ao protagonista. Apesar de ter um convite para sair com amigos, Pierre decide ficar em casa, na sua “man cave”, enquanto Cléa não hesita em aceitar. Cedo se estabelece o casal como o oposto um do outro. Pierre é introvertido e cerebral, enquanto Cléa é sociável e emocional, o clássico exemplo de como os opostos se atraem. Parece haver compreensão e harmonia entre ambos, e o próprio acto de ficar em casa sozinho, deleitando-se na sua paixão por matemática, revela uma aparente aceitação pessoal dos seus desejos. Aos poucos, o argumento introduz pequenos pormenores, como o constante olhar vazio de Pierre, a pouca interacção com Belle, contrariando a relação próxima desta com Cléa, e muitos outros pormenores da sua personagem que revelam um homem a que o espectador não consegue evitar julgar. Algo aparenta estar errado ou, como a narrativa muitas vezes gosta de brincar, talvez sejam os preconceitos do próprio espectador a falar mais alto. A dúvida é a única certeza que o argumento procura cultivar e fá-lo constantemente em cada cena.
Sente-se também um efeito maverick na atitude de Pierre, não se importando como as suas acções o parecem levar a consequências cada vez mais severas na sua vida pessoal e profissional. O argumento acaba por se transformar num intenso combate entre a sociedade/polícia e Pierre, em que cada um dos lados não olha a meios para ora conseguir provar a culpa de Pierre ou, no caso do próprio, provocar e testar a inteligência e paciência de quem o persegue. Como é natural, novos pormenores surgem à superfície e continuam a minar e desgastar cada um dos lados. A personagem criada por Guillaume Canet é uma espada de dois gumes, ora passível de adulação e respeito ora de um profundo desconforto e mesmo incredulidade. É também a única personagem que revela uma complexidade emocional e afectiva, em grande parte devido à interpretação de Canet, sempre em controlo total da sua personagem, mesmo quando o argumento deambula por caminhos desconexos do rumo que, inicialmente, aparentava levar.
Charlotte Gainsbourg tem um papel inglório de apoiante incontestável do marido, e onde sub-histórias parecem introduzidas a martelo, para lhe dar igual protagonismo, mas que a narrativa esquece para priorizar Pierre, e a sua demanda de justiça. Existe, aliás, um ambiente misógino a borbulhar por baixo da superfície heróica deste homem, independentemente do rótulo de culpado ou inocente, e que deixa um amargo de boca difícil de engolir. As mulheres ora são subservientes, leais e devotas, em situações onde a dúvida deveria existir – no caso de Cléa – ou um veículo de desejo e luxúria para todos os homens – no caso de Belle, o maior equívoco e erro desta história ao retirar-lhe qualquer identidade, para além da sexual. Saber que realidade e ficção se misturam, na pessoa do seu realizador e este argumento, acaba por prejudicar os outros pontos de vista válidos da narrativa e colocar-nos num dilema moral, como espectadores, perante a avaliação justa desta obra.
A maior virtude deste Belle de Benoît Jacquot reside na construção exímia de Guillaume Canet como Pierre e no constante sentimento de dúvida cultivado pelo argumento. Contudo, essa total subserviência à viagem do protagonista revela verdades difíceis de engolir e um final inesperado mas desconexo e desligado do caminho que sempre cultivou em toda a sua duração.