O conceito de amor-próprio é um de exclusividade para o ser humano. Não existe outro animal, racional ou irracional, capaz de se auto-torturar constantemente e de continuamente se sabotar até ao desespero emocional. O outro lado da moeda também é possível, o narcisismo camuflado, que nos incha para além do que realmente valemos ou temos para dar ao mundo. É por isso necessário uma ginástica tremenda para equilibrar os pratos desta balança numa relação entre duas pessoas. Cada acção tem uma reacção no outro, tanto nos pode levantar o espírito ou então conduzir-nos até aos mais escuros e traumáticos “buracos negros” não resolvidos de traumas passados.
O interesse de explorar o lado traumático do passado, e do que transporta para o presente e para as nossas relações, é a principal preocupação de Elskling (Loveable / Até Sempre), escrito e realizado por Lilja Ingolfsdottir. Maria (Helga Guren) é uma mulher assoberbada com um trabalho exigente e com quatro filhos para cuidar, 2 de um relacionamento passado, agora adolescentes, e 2 crianças pequenas fruto do seu casamento actual com Sigmund (Oddgeir Thune). As suas constantes viagens em trabalho acabam criar um clima de tensão e discussões constantes, levando ao inevitável pedido de divórcio de Sigmund. Até onde estará Maria disposta a ir para salvar esta relação?
É com esta premissa que o trailer do filme nos bombardeia e, durante os primeiros 30 minutos, é esse o caminho que pretende emular, mas o que segue é outro bem distinto. O argumento de Ingolfsdottir está mais interessado no lado feminino da equação, deixando o lado masculino na sugestão ou em breves interjeições e olhares. A personagem de Maria é introduzida ao espectador através de uma conversa na sua mente. Esta fala da fase do conhecimento inicial e da descoberta do seu marido pela primeira vez, sempre carregada de ilusões e promessas de um futuro perfeito. Este é o único momento onde a felicidade domina o coração de ambos. O salto é imediato para o momento de rotura, sem explicações, comentários ou pistas do que aconteceu. Vemos os sentimentos, dúvidas e medos em Helga Guren, e tudo parece caber no seu olhar, da raiva à confusão até à letargia ou à resignação. É uma interpretação de libertação e de descoberta de um amor-próprio há muito perdido. Por vezes expansiva demais ou literal no que quer expressar mas nunca menos do que assertiva e verdadeira em revelar esta mulher.
Tal é o seu comando sobre a narrativa que sobra muito pouco para as outras personagens, não passando de meros figurantes, uns incertos no que querem dizer ou exprimir, bem patente em Sigmund, numa interpretação frouxa de Oddgeir Thune, enquanto outros são usados para passar um ponto de vista ou revelar pistas de superação. Um dos mais interessantes pontos de vista explorados aqui, e o mais inesperado, é como o trauma se transporta de geração em geração, aqui representado pela mãe de Maria, interpretada por Elisabeth Sand, e a sua filha Alma, interpretada por Maja Tothammer-Hruza. Há um exagero de momentos com a filha mas a importância destes só se tornam aparentes na brilhante cena que Helga Guren partilha com Elisabeth Sands, a sua mãe. Não há por isso falta de talento no elenco, mas sim uma prioridade clara do argumento em retratar o dano emocional de Maria segundo os estágios propostos por Elisabeth Kϋbler-Ross para o luto. Todos estão retratados, em alguma medida, mas existe um que adquire prioridade sobre todos os outros, a raiva.
Existe uma clara obsessão da realizadora com o mapeamento da origem deste trauma, através de viagens ao passado, em diálogos no presente e sempre com a saúde mental como porta-estandarte. Este é, cada vez mais, um assunto na ordem do dia e aqui transforma-se de acessório, no retratar de um relacionamento tóxico, para o coração pulsante da viagem rumo ao amor-próprio da protagonista. Usa e abusa da psicologia clínica e actua inadvertidamente como um anúncio para as vantagens da terapia. Os chavões da terapia são muitas vezes repetidos e os diálogos são demasiado polidos (parecem sempre ter a frase perfeita na ponta da língua) mas existem momentos bonitos de aceitação e de compreensão familiares a quem já a experienciou. Depois de um início confuso mas honesto, o filme encontra o rumo certo, na viagem de Maria, mas acabam por haver más decisões na fase de aceitação e resolução do conflito, fruto da ambição da realizadora em complicar o que pedia simplicidade.
Há uma identidade visual marcada de forma subtil, com os momentos felizes banhados a luz do sol e acompanhados de flares lindíssimos, a iluminar o rosto de Maria enquanto a melancolia surge em cores cinzentas, como se o sol estivesse atrás de um espesso manto de nuvens. Existem outros pormenores interessantes para retratar outros sentimentos marcantes da narrativa, como a raiva, omnipresente. O contraste é feito com a letargia, que a solidão da protagonista invoca, ora obscurecendo o rosto, ora iluminando-o através de luz artificial em momentos chave – muitas vezes na mesma cena. Já em termos de composição Øystein Mamen, o director de fotografia, peca pelo conservadorismo competente, perfeito para contar esta história, mas que em nada contribui para o destacar na oferta variada do drama europeu actual.
Na sua primeira longa-metragem atrás das câmaras, Lilja Ingolfsdottir volta a comprovar a apetência nórdica para explorar o trauma humano e o sofrimento auto-infligido na procura de uma ligação amorosa. O que a distingue de tantas outras ofertas actuais do cinema europeu é o meticuloso mapa que cria de Maria, interpretada por uma imponente Helga Guren, na suas idiossincrasias e traumas geracionais femininos. Um conceito tão ambicioso tem as suas repercussões na narrativa, mas carrega também a esperança de um amanhã mais luminoso: também sou eu merecedor de amor? Esta é a pergunta que ecoa no espectador no fim desta jornada.