Camila Sosa Villada, Ney Matogrosso, Peter Hujar, e Lionel Soukaz são os primeiros nomes do Queer Lisboa 2025.
A 29ª edição do Queer Lisboa revela os primeiros destaques da programação e retrospetiva dedicada ao cineasta e ativista francês, Lionel Soukaz, autor do clássico Race d’Ep, falecido no início de 2025.
O Queer Lisboa – Festival Internacional de Cinema Queer, está de volta ao Cinema São Jorge e Cinemateca Portuguesa, para a sua 29ª edição, entre os dias 19 e 27 de Setembro. Com cerca de uma centena de filmes na sua programação, o festival dá a conhecer os primeiros destaques. São assim reveladas as longas-metragens de ficção e documentais, fora de competição, e que são apostas da secção Panorama, onde podem ser vistos títulos como Tesis sobre una Domesticación, escrito e protagonizado pela aclamada escritora trans argentina, Camila Sosa Villada; Homem com H, de Esmir Filho, sobre a vida e obra de Ney Matogrosso e que agora pode ser visto em sala, no festival; o muito antecipado I’m Your Venus, documentário que resgata a figura de Venus Xtravaganza, imortalizada em Paris Is Burning, de 1991, ou o mais recente filme de Ira Sachs, Peter Hujar’s Day, protagonizado por Ben Whishaw e Rebecca Hall. A partir de dia 20 de Setembro, na Cinemateca Portuguesa, apresenta-se uma justa homenagem ao cineasta francês Lionel Soukaz, ativista e figura central e pioneira do movimento LGBTQIA+ em França.
Nascido em 1953 e falecido em Fevereiro último, em Marselha – para onde se havia mudado há já vários anos, depois de uma vida quase toda passada em Paris, Lionel Soukaz foi um dos pioneiros do cinema queer francês, com uma forte afiliação aos ativistas e intelectuais da FHAR (Frente Homossexual de Ação Revolucionária) eda revista Gai Pied, como Guy Hocquenghem ou Copi. Fortemente influenciado pelos movimentos de vanguarda e cinema experimental da década de 1970, foi também responsável pela organização do primeiro festival de cinema gay e lésbico de Paris, o Écrans Roses et Nuits Bleues, em 1978. Os seus filmes, resgatados de um certo esquecimento em 2004, graças sobretudo à reivindicação da crítica cultural francesa Nicole Brenez, revelam um intransigente compromisso com a narração autobiográfica e com a expressão do desejo, e encarnam a sua ânsia ilimitada de liberdade, o que levou à censura de alguns dos seus trabalhos. Censura que Soukaz incorpora e ironiza em obras suas como Ixe, de 1980, como resposta-choque, explícita, ao brado censório à volta de Race d’Ep, lançado no ano anterior, hoje um clássico incontornável do cinema francês, corealizado e coescrito com Hocquenghem, um filme com influência direta de Foucault e que traça a história da homossexualidade moderna ao longo do século XX, desde os primórdios da sexologia e os nus do Barão von Gloeden, até ao ativismo gay e o cruising nas ruas de Paris.

Race d’Ep (1979), de Lionel Soukaz e Guy Hocquenghem
A retrospetiva, composta pelo seu trabalho no formato da curta e média-metragem, é organizada à volta de um conjunto de linhas estéticas, temáticas e narrativas, mas sobretudo autobiográficas, elemento central e estruturante da obra de Soukaz. Como está plasmado, por exemplo, em RV, mon ami, de 1994, um emotivo poema visual dedicado ao seu companheiro de 12 anos, Hervé Couergou, falecido nesse mesmo ano de 94 de complicações derivadas do VIH/sida, e com o qual se abre esta retrospetiva, a par do celebrado Artistes en Zone Troublés, de 2023, que mergulha nas cassetes, cartas e diários trocados entre ambos, para construir uma ode ao amor em tempos de epidemia. É também com base no seu Journal Annales, um arquivo de mais de 2.000 horas de imagens por si recolhidas ao longo dos anos, que Soukaz constrói En Corps +, de 2021, um manifesto das vidas e corpos, ativistas e artistas, que moldaram a sua vida e obra. Estes dois últimos filmes foram corealizados com o cineasta francês Stéphane Gérard, que estará em Lisboa para a apresentação da retrospetiva e para uma conversa com o público, na Cinemateca Portuguesa.
E porque a vida e obra de Soukaz se cruzam com a história queer francesa e mundial, e com a história do cinema, uma obra que vive e observa o seu tempo, neste programa encontramos Jean Genet (La loi X – La nuit en permanence, 2001), onde Soukaz regressa ao tema da censura; Pasolini (Les Corps d’amour de Pasolini, 2005), sobre textos do filósofo francês René Schérer, outra presença habitual nos seus filmes; Michel Journiac, pioneiro da arte corporal em França (150 poèmes mis en sang, 1993); e até Jean-Luc Godard, num discurso sobre a Palestina (Carottage, 2009), ou Allen Ginsberg a marchar em Washington, em La Marche gaie, de 1980. A retrospetiva, inevitavelmente, explora também as primeiras duas décadas da sua obra, marcadas por uma linguagem visual experimental, mais contemplativa, como vemos em Ballade pour un homme seul, de 1969, ou Lolo Mégalo blessé en son honneur, de 1974, assim como a sua importante e inovadora incursão no cinema explícito, com Le Sexe des anges, de 1977.
Secção por excelência dedicada a destaques do circuito internacional, assim como a documentários de espectro temático mais alargado sobre a cultura queer, a secção Panorama deste ano desvela um conjunto de títulos que celebram figuras como as de Camila Sosa Villada, Ney Matogrosso, Venus Xtravaganza, Peter Hujar, Sally Gearhart ou Alexina B., e outros que traçam contextos políticos passados, mas também presentes, como a perigosa ascensão da extrema-direita no mundo ocidental. É esse precisamente o tema do documentário italiano, My Boyfriend el Fascista, de Matthias Lintner, onde o realizador, esquerdista, filma a relação com o namorado, Sadiel Gonzalez, migrante cubano em Itália e defensor das ideologias da extrema-direita, revelando-se as suas muitas idiossincrasias, mas que nos obrigam a uma séria reflexão sobre estes tempos que vivemos. Na ficção, a dupla brasileira Filipe Matzembacher e Marcio Reolon regressa ao QueerLisboa com Ato Noturno, estreado em fevereiro último na Berlinale, onde a hipocrisia política se alia a uma apetência pelo sexo em público, num cativante neo-noir passado na Porto Alegre dos dias de hoje.

I’m Your Venus (2024), de Kimberly Reed
Em 1991 é lançado um documentário, assinado por Jennie Livingston que, apesar das muitas críticas que o acompanharam, se viria a tornar uma influente obra na cultura queer. Paris is Burning revelara-nos os muitos rostos até então anónimos da cena ballroom de Nova Iorque, de entre os quais se destacou um, o de Venus Xtravaganza, mulher trans e trabalhadora do sexo, a quem seria retirada a vida ainda antes da estreia do filme. I’m Your Venus, assinado pela realizadora trans Kimberly Reed, procura hoje respostas ao seu desaparecimento, juntando as suas famílias biológica e escolhida, numa sentida e justa homenagem. Dos EUA, chega-nos um outro documentário, Sally!, de Deborah Craig, que passa em retrospetiva a vida e o legado de Sally Gearhart, falecida em 2021, importante pioneira do movimento feminista lésbico dos anos 70 e 80, nos EUA, onde fez ativismo ao lado de figuras conhecidas como Harvey Milk.
De regresso ao festival está o cineasta independente Ira Sachs, com o seu mais recente Peter Hujar’s Day, adaptação literal do livro homónimo, da escritora Linda Rosenkrantz, que transcreve uma conversa sua com o famoso fotógrafo norte-americano, seu amigo. De uma estética e contenção irrepreensíveis, Sachs constrói um filme intimista, ode à criação artística e à cidade de Nova Iorque, com interpretações exímias de Ben Whishaw e Rebecca Hall. De Espanha, chega-nos o documentário Alexina B. Vidas en Composición, de Alexis Borràs, onde se explora o processo de composição da nova ópera de Raquel García-Tomás, inspirada nas memórias de Alexina B., uma pessoa intersexo do século XIX, biografada por Foucault no seu “Herculine Barbin dite Alexina B.”. Nesta jornada artística, Raquel García-Tomás transforma a compreensão da realidade intersexo numa fonte de empatia e inspiração, mostrando como cada decisão musical e narrativa dá vida a esta comovente história.

Tesis sobre una Domesticación (2024), de Javier van de Couter
De regresso à América do Sul, dois títulos que são um tour de force de Jesuíta Barbosa e Camila Sosa Villada. Homem com H, de Esmir Filho, é um olhar à vida do cantor Ney Matogrosso, protagonizado por Barbosa, habilmente contornando a tentação de retratar a totalidade de uma vida tão cheia, focando-se antes nas relações e momentos-chave da sua vida pessoal e carreira e que nos ajudam a perceber este fenómeno de transgressão da MPB e que tanta influência teve na cultura queer brasileira – e onde não falta a presença desse outro ícone, Cazuza. Fenómeno literário latino-americano, logo no momento do seu romance de estreia, As Malditas, a escritora trans argentina Camila Sosa Villada, tem-se afirmado também como argumentista e atriz. Adaptado por Villada do seu romance do mesmo nome, e realizado por Javier van de Couter, Tesis sobre una Domesticación põe a atriz ao lado do ator mexicano Alfonso Herrera, nesta construção hiperbólica de uma domesticidade impossível, onde Villada volta a rasgar todos os cânones da normatividade.
Este ano, a equipa de programação do Queer Lisboa e Queer Porto, teve em consideração 1.081 filmes, 520 deles recebidos como submissões. As competições do Queer Lisboa 29 e Queer Porto 11 e restante programação de ambos os festivais serão conhecidas em finais de Agosto e início de Setembro.
FILMES ANUNCIADOS DO QUEER LISBOA 29:
RETROSPETIVA: Lionel Soukaz
150 poèmes mis en sang, Lionel Soukaz, Michel Journiac (França, 1993, 13′)
Artistes en Zone Troublés, Lionel Soukaz, Stéphane Gérard (França, 2023, 39′)
L’année des treize lunes, Lionel Soukaz, Tony Tonnerre (França, 2001, 18′)
Autoportrait, Lionel Soukaz (França, 2002, 8′)
Ballade pour un homme seul, Lionel Soukaz (França, 1969, 18′)
Carottage, Lionel Soukaz, Powers, Stéphane Gérard (França, 2009, 47′)
Les Corps d’amour de Pasolini, Kami Kaz, Lionel Soukaz, Olivier Hérkaz (França, 2005, 34′)
En corps +, Lionel Soukaz, Stéphane Gérard (França, 2021, 65′)
Ixe, Lionel Soukaz (França, 1980, 44′)
La loi X – La nuit en permanence, Lionel Soukaz (França, 2001, 9′)
La Marche gaie, Lionel Soukaz (França, 1980, 12′)
Lolo Mégalo blessé en son honneur, Lionel Soukaz (França, 1974, 17′)
Maman que man, Lionel Soukaz (França, 1982, 49′)
Nu lacté, Lionel Soukaz, Othello Vilgard, Xavier Baert (França, 2002, 6′)
Race d’Ep / The Homosexual Century, Guy Hocquenghem, Lionel Soukaz (França, 1979, 83′)
RV, mon ami, Lionel Soukaz (França, 1994, 28′)
Le Sexe des anges, Lionel Soukaz (França, 1977, 45′)
PANORAMA
Alexina B. Vidas en Composición / Alexina B. Composing Lives, Alexis Borràs (Espanha, França, 2025, 77′)
Ato Noturno / Night Stage, Filipe Matzembacher, Marcio Reolon (Brasil, 2025, 119′)
Homem com H / Latin Blood – The Ballad of Ney Matogrosso, Esmir Filho (Brasil, 2025, 129′) * na foto
I’m Your Venus, Kimberly Reed (EUA, 2024, 85′)
My Boyfriend el Fascista / My Boyfriend the Fascist, Matthias Lintner (Itália, 2025, 95′)
Peter Hujar’s Day, Ira Sachs (EUA, Alemanha, 2025, 76′)
Sally!, Deborah Craig (EUA, 2024, 95′)
Tesis sobre una Domesticación / Thesis on a Domestication, Javier van de Couter (Argentina, 2024, 113′