O género coming-of-age pode ser tão antigo como a própria arte de contar histórias, mas não é por isso que qualquer pessoa consegue dominá-lo. É preciso um toque especial para capturar a montanha russa que é a pré-adolescência. Uma montanha russa cujos contornos são indefiníveis, cujas voltas e loops são imprevisíveis e cuja linha de chegada parece sempre inatingível. Dìdi pode ser a primeira longa-metragem de ficção de Sean Wang, mas o realizador taiwanês-americano tem esse toque em carradas.
O filme acompanha Chris Wang, apelidado de Dìdi pela família e interpretado por Izaac Wang, um rapaz de 13 anos a meses de ingressar no ensino secundário, enquanto navega os caminhos sinuosos e ilógicos da amizade, do romance, da ambição e do autoconhecimento na Califórnia suburbana do final dos anos 2000. Entre páginas de MySpace, vlogs de YouTube, bandas punk rock (incluindo um amor muito merecido por Paramore), skate, chat boxes, festas com amigos e dramas familiares, Chris vai dando pequenos e frustrados passos em direção à idade adulta num processo que todos reconhecemos: o cair do véu da inocência, desvendando o lado macabro e injusto de um mundo em que dependemos apenas de nós mesmos para sobreviver.
Crescer é lixado, mas Dìdi entende que, mesmo sendo esta uma observação óbvia, é precisamente a sua universalidade que a torna merecedora de especial atenção. Mais importante ainda é o seu entendimento de que a única forma verdadeiramente válida de abordar tal abrangente experiência é pegar nela pelo prisma pessoal, pela especificidades e idiossincrasias de uma só pessoa. E não há sujeito mais verdadeiro que nós mesmos. Wang toma, então, a decisão acertada de usar a sua própria adolescência como fonte de inspiração para o seu filme, que assume, assim, um caráter semi-biográfico. Esta ligação forte e direta à realidade é notável em cada detalhe, na linguagem e fisicalidade adotadas por Chris e pelos seus colegas que se julgam já tão adultos, a crescer e a auto-definir-se no advento das redes sociais.
Este último elemento é particularmente fascinante e distintivo. Parte do mérito de Dìdi está na sua examinação do papel da internet e, mais concretamente, das redes sociais na criação de laços num período já de si tão complexo. Apesar da perspetiva de Wang ser certamente informada pelo inferno em que estas plataformas se acabaram por tornar, o realizador preserva a atitude de entusiasmo e liberdade que as mesmas proporcionavam nos seus primórdios. O resultado é um diálogo tensional entre o potencial das redes sociais para promoverem a exploração dos interesses pessoais, ajudando, assim, na edificação da personalidade, e a sua toxicidade na forma como exige uma performance constante e incentiva à desonestidade e ao cinismo. A determinada altura, num momento especialmente solitário, Chris procura validação e companhia perto duma chat box automática que afirma ser sua amiga, no que é uma claro piscar de olhos pela parte de Wang ao futuro domínio da inteligência artificial, e talvez, até, uma proposta de discussão sobre como esta nos tem vindo a afastar uns dos outros cada vez mais.
A estética visual de Dìdi é igualmente característica daquele período. Wang permite-se brincar com a tecnologia e os formatos digitais que já se haviam tornado ubíquos. Era o início da presença de um computador em cada quarto, de um telemóvel em cada mão, e das câmaras de filmar e fotografar que permitiam a qualquer um ser filmer. Esta acessibilidade leva o protagonista, possivelmente num paralelismo com a vida do próprio realizador, a dar os primeiros passos no mundo do cinema. O ponto de vista de Chris chega-nos através da sua própria lente – a da sua câmara digital que leva consigo para todo o lado e usa para filmar as partidas que prega aos seus amigos e vizinhos e, mais tarde, as manobras de skate de uns rapazes mais velhos. Wang, por sua vez, alterna entre formatos, carregando Dìdi da nostalgia Y2K que tem dominado as tendências da cultura pop atual.
Mas, ao mesmo tempo que acompanhamos esta viagem tão adolescente de hormonas aos saltos, acne, aparelho nos dentes, e quezílias infantis com amigos parvos, surge em Dìdi um murro emocional que nos apanha desprevenidos e que o eleva por completo: a relação de Chris com a sua mãe, Chungsing (interpretada pela icónica atriz chinesa-americana Joan Chen).
Esta não escapa, claro, aos clichés da adolescência, incluindo a vergonha que o filho sente da mãe, a falta de respeito e carinho que por ela nutre, e a dolorosa despromoção da figura da mãe de protagonista para figurante que tende a acontecer nesta fase da vida. O que é de valor é a forma como Wang se compromete a desconstruir estes lugares comuns, complexificando-os através da contextualização de Chungsing enquanto mãe solteira, mãe imigrante, e, ainda, enquanto mulher nascida e criada na sociedade conservadora e tradicionalista taiwanesa.
Chen traz uma vulnerabilidade e frustração magnéticas à batalha interna que a personagem trava entre os seus sonhos artísticos e a realidade doméstica que os abafa. É o retrato de uma mulher moderna, num país que não é o dela, forçada a falar numa língua que não domina, desvalorizada pelos filhos e pela sogra, e pressionada pela sua comunidade a manter uma aparência de perfeição e tranquilidade. Chungsing sente-se abafada pela vida que por um lado escolheu e, por outro, foi escolhida para si. Não tem o espírito nem a energia para ser severa com os seus filhos, Chris e a irmã Vivian (Shirley Chen), que passam a vida a guerrear e a insultar-se, numa crueldade que acabam por estender para o alvo fácil que é a sua mãe. Há, na realização de Wang, mais concretamente no destaque que escolhe dar à personagem de Chungsing, uma silenciosa mas avassaladora admissão de culpa da parte de Chris (e, talvez, do próprio realizador) pelo tratamento injusto da sua mãe. A honestidade e empatia para com a figura materna presentes em Dìdi são absolutamente raras em histórias sobre este tipo de personagens masculinos, sendo, por isso, quase catárticas.
Mesmo perante a rapariga bonita por quem tinha uma crush, os amigos que tanto tentava impressionar e os rapazes mais velhos que tanto queria imitar, no final, não restam dúvidas de que a pessoa mais influente e importante na jovem vida de Chris é a sua mãe.
A grande proeza de Dìdi está na maturidade com que aborda os seus temas, mesmo quando aplicados à fase possivelmente mais imatura da vida de um rapaz. Wang, com cerca de 30 anos, consegue olhar para a sua infância com o entendimento de alguém sensível, curioso e resolvido. E, ao fazê-lo, oferece a Chris e a Chungsing a generosidade, compaixão e consideração que tanto lhes foram negadas, naquela altura, pelas circunstâncias, pelos seus pares, e pela sua situação enquanto miúdo de 13 anos e mãe solteira.