O ser humano anseia constantemente por um sentido de comunidade, e encontrá-lo é um objetivo infindável. A necessidade de pertencer é uma qualidade inata e positiva, contudo, muitas vezes, resulta em algo obsessivo, quando aliado à manipulação dos mais frágeis ou a uma qualquer veneração desmedida. Esta descrição é o sinónimo de um culto, ou pelo menos é-lo na sua conotação mais negativa, e é, também, a essência de La Casa Lobo (The Wolf House), filme realizado por Cristóbal León e Joaquín Cociña.
Este sonho febril na forma de stopmotion e animação em 2D e 3D, conta a história de Maria (V.O. Amalia Kassai), uma menina chilena, que, após fugir de uma colónia alemã, procura refúgio numa casa no meio da floresta, no sul do Chile, onde os únicos habitantes são dois pequenos porcos que, ao longo do filme, lentamente se transformam em humanos. O que começa por ser uma alegre divulgação de uma comunidade religiosa, lentamente se revela como um pesadelo, que esconde a história verídica por detrás dos eventos terríveis que ocorreram no Chile durante a última metade do século XX.
Inspirado no caso real da Colonia Dignidad, La Casa Lobo é apresentado como uma propaganda animada, produzida pelo líder da colónia, Paul Schäfer, de forma a doutrinar os seus seguidores e atrair novos fiéis. À primeira vista, esta comunidade alemã abrigava religiosos devotos em busca de uma vida pacífica e pura, reputados como trabalhadores árduos, dedicados à agricultura e, especialmente, à produção do seu mágico e famoso mel. Contudo, por detrás dos fortes laços que afirmava ter com os seus “amigos” chilenos, a Colonia Dignidad acolhia um grupo de simpatizantes nazis, que havia fugido para o Chile após a Segunda Guerra Mundial. Paul Schäfer, ex-militar alemão, não só perpetrou rituais religiosos contra os seus membros, cujos detalhes permanecem sob investigação, como fez da colónia uma seita e um local de tortura, assassinato de dissidentes políticos à ditadura, e ainda de extrema pedofilia, razão pela qual foi preso mais tarde.
Só depois desta bagagem histórica é possível compreender La Casa Lobo como a obra de arte que é, o que pode ser um ponto negativo. É um filme difícil de interpretar e digerir sem conhecer os eventos trágicos por detrás da sua produção, no entanto, oferece, de qualquer modo, uma experiência de visualização absolutamente imersiva e visceral, podendo ser considerado um dos filmes de terror de animação mais perturbadores e marcantes alguma vez feito.
A sua estética é inigualável e lindíssima, pelo que cria quase uma pintura móvel. Desprovido de quaisquer cortes completos, cada shot é construído por cima do anterior, resultando numa composição harmoniosa e, graças ao seu enredo, pavorosa, em simultâneo. La Casa Lobo incorpora traços de diversas formas artísticas, como a escultura, a colagem, a pintura, o desenho a carvão, e até elementos de live-action, como mobília antiga e suja, tudo através da animação em stop-motion. Esta panóplia de técnicas é, além de deslumbrante e hipnotizante, uma peça central para causar o terror, que reside essencialmente na desconstrução das esculturas e na destruição e consequente restituição dos cenários.
A imagem é especialmente impressionante por causa da dualidade entre Maria e o espaço onde ela, agora, habita: a constante mutação da casa é o reflexo dos seus sentimentos mais ocultos e profundos, os dois atuam em sintonia, pelo que o desenrolar da história e o desenvolvimento das outras duas personagens, os porcos, é fruto das condições vividas na casa, ou seja, dos traumas e conflitos internos de Maria.
La Casa Lobo retrata de um modo muito desconcertante a vontade da jovem de se separar completamente da colónia onde cresceu, viveu e sofreu, de onde retirou convenções preconceituosas, mas a sua incapacidade de concretizar tal desejo, porque os traumas que carrega cobrem qualquer tipo de luz e esperança por vida melhor. Demonstra como esta inquietação impacta a vida dos mais próximos à nossa volta, neste caso os dois porcos, que, gradualmente, sob os ensinamentos de Maria, se tornam numa visão idealizada mas corrompida de como a sociedade deveria ser.
Aliadas a esta luta psicológica, é necessário mencionar a narração e sonoridade, no geral, do filme. Existe uma alternância entre as línguas faladas, nomeadamente o espanhol, que entra quando o tom é mais ternurento e reconfortante, e o alemão, que rompe quando a energia começa a pesar e os pesadelos a atormentar. Neste contexto, surge uma das personagens, omnipresente, mais presente na vida de Maria, o suposto lobo (V.O. Rainer Krause), que invade continuadamente na forma de uma voz inquietante dentro dos pensamentos dela, como este aviso de que, mesmo de longe, o líder da colónia estará sempre a assombrá-la, a relembrá-la de um passado sem escapatória.
La Casa Lobo remete para contos infantis, como Os Três Porquinhos ou as mais variadas fábulas com a personagem do Lobo Mau, mas é tudo menos inocente e gentil como uma criança. De um modo muito peculiar, quando comparado com qualquer outro filme, exprime, através de uma técnica bizarra, como uma experiência tão traumática atormenta eternamente a vida de alguém. Nós somos como somos, temos os nossos próprios traços de personalidade, mas muitas vezes não conseguimos escapar das nossas origens e da nossa educação.
