“Miséria é miséria em qualquer canto; riquezas são diferentes”, diz a canção da banda brasileira Titãs. É intrigante, porém, como riquezas se tornaram iguais, com a globalização a consumir os mesmos estilos e as mesmas marcas de roupas, relógios, carros e outros supérfluos que afirmam as suas “diferenças”, como a própria canção regista antes de terminar. Diferente mesmo é a miséria, e cada vez mais. Como uma pessoa sobrevive numa favela no clima tropical do Rio de Janeiro ou num bairro pobre da agradável Lisboa, é uma coisa. Outra é como fazer isso num lugar que chega a nevar e tem uma cultura totalmente diversa daquela na qual estamos inseridos, como os subúrbios de Nova Iorque ou Paris. Essa curiosidade pode ser logo a primeira atração de Bâtiment 5, filme francês também conhecido como Les Indésirables (Os Indesejáveis).
Bâtiment, em francês, significa prédio, neste caso, uma espécie de favela vertical, abandonada pelo estado, onde se passa uma boa parte da história. Nos primeiros e nos últimos frames do filme, vemos o prédio e o rosto resignado de Haby (Anta Diaw), personagem em torno da qual a história é construída. Filha de migrantes de origem africana, “uma francesa dos dias de hoje”, comanda um projeto social para ajudar na adaptação de quem chega de outros países, sem muitas vezes saber falar francês. O conflito começa quando um novo presidente assume o governo da cidade, uma espécie de outsider da política, mas representante da “família tradicional francesa”, que resolve implementar uma série de mudanças do estilo “lei e ordem”. A questão é que, num contexto no qual os índices de violência não justificam medidas extremas, como na Europa em geral, estas acabam por se converter em práticas que ameaçam a democracia.
O alvo são “os indesejáveis” do prédio número 5 daquele bairro nos subúrbios de Paris. Aqui, a riqueza mostra mais uma vez como é igual na sua forma de agir com o seu poder de império contra tudo e todos os que lhe geram ónus. O objetivo do presidente é demolir o prédio, como a câmara já tinha conseguido com outros, para construir novos, diante as exigências dos próprios moradores por melhores condições de habitação. “Como podemos viver e morrer num lugar destes?”, questiona a mãe de Haby. Assim, o presidente só vai parar quando conseguir o que quer, sem ter em conta o custo social, como o realizador e argumentista Ladj Ly, de origem malinesa, sabe por experiência pessoal, a viver nos subúrbios de Paris. Sem chamar à atenção pelos seus recursos técnicos como a montagem, fotografia ou banda sonora, o filme aposta na autenticidade de uma história simples, de pessoas comuns, contada de forma sóbria e até bruta, a ecoar a obra de Ken Loach, seja no Reino Unido, com Sorry We Missed You (2019) e I, Daniel Blake (2016), seja na Nicarágua com Carla’s Song (1997).
Para além da gentrificação, com o discurso de promover melhores condições de moradia que certamente estarão fora da capacidade de pagamento de muitas daquelas pessoas ou as manterão em condições precárias, sem nunca terem a propriedade definitiva de nada, o filme aponta diretamente para o racismo. É assim que um pai e uma filha migrantes da Síria e, portanto, de pele branca, são convidados a passar a noite de Natal com o autarca e sua família, enquanto os “indesejáveis” são tratados somente como casos de polícia.
Haby não é ingénua, sabe os seus direitos e como defendê-los. Apenas é muito pequena perante o “mecanismo”, que obviamente é só uma forma de nomear o jogo proposto pela elite de cada país para exercer o seu poder, sempre com frestas às quais só ela tem acesso, para manter os seus privilégios. Desta forma, a máquina do estado e as forças policiais são ativadas para impor o cumprimento das ordens imperiais. Resta a Haby, uma mãe solteira, digerir as perdas que acumula para tentar seguir a vida como for possível. Enquanto monta uma árvore de Natal com as crianças, o seu filho pergunta se, para eles que são muçulmanos, não é pecado celebrar o Natal. Ela explica que não porque se trata de uma festa comercial, “para ganhar dinheiro”. Ela mesma não acusa o racismo como elemento. Para ela, tudo se resume a apenas uma coisa: negócios. Nada pessoal. A sua indignação é contra o abuso de poder e a imposição de negócios ruins para a sua comunidade.
Bâtiment 5 não oferece respostas óbvias nem um desfecho claro para o conflito. Depois de 1h45, a única constatação possível é de que esta é uma história que nunca termina, repete-se no tempo e no espaço, em França, no Reino Unido ou na Nicarágua, e o que resta é só tentar manter-se de pé e em condições de continuar a lutar. “Não sejamos mais resignados”, apelam os cartazes colados nas paredes, no meio da história.