As memórias afectivas têm um poder enorme sobre a percepção que temos sobre um filme. Na maior parte dos casos é uma reacção emocional em que a razão ou a ponderação não entram. Têm o dom de, simplesmente, nos transportar a um tempo onde tudo era mais simples e a felicidade estava numa tarde de domingo passada, em família, no escuro do cinema. Com o passar do tempo, os gostos mudam e a visita ao cinema deixa de ser um evento familiar e torna-se num encontro de amigos ou num espaço desafiante, de risco e experimentação.
Freaky Friday (2003) é um dos muitos exemplos de entretenimento familiar que era normal ver numa sala de cinema e que, o advento do streaming, tem forçado a ser visto no conforto do sofá de casa. A chegada da sua sequela, Freakier Friday, fazia prever um caminho similar mas o excelente box-office do original e o factor nostalgia, tão em voga nos dias de hoje, precipitaram a estreia em sala.
A história encontra Tess (Jamie Lee Curtis) e Anna (Lindsay Lohan) 20 anos depois, em plena crise de identidade. Tess procura entrar no mundo das novas tecnologias com a sua formação em psicologia e Anna é agente e produtora de uma estrela pop, após o fim da sua carreira, mas as coisas não correm como o esperado. A isto junta-se uma filha adolescente rebelde e uma enteada prestes a juntar-se à família, e a estabilidade familiar está longe de ser alcançada. O “terramoto” esperado é inevitável e desta vez é a dobrar.
A vontade das protagonistas, Jamie Lee Curtis e Lindsay Lohan, de trazer novamente até nós a sua Tess e Anna é por demais evidente desde os primeiros segundos. Somos imediatamente introduzidos aos problemas do mundo actual, seja a pressão dos avanços tecnológicos e das redes sociais, inexistentes na altura do original, e ao inevitável envelhecimento a que ninguém está imune. Mantêm-se o excelente timing cómico e expressividade de Jamie Lee Curtis e a excelente química partilhada com Lindsay Lohan, mas algo parece off na interpretação de Lindsay Lohan. Isto é particularmente evidente antes da mudança de corpos esperada, mas felizmente recupera bem a partir desse momento, principalmente em alguns momentos cómicos inspirados. As novas personagens Harper, interpretada por Julia Butters, e Lily (Sophia Hammons) são boas adições ao elenco, e muito fortes nas cenas emocionais, mas desequilibram a comédia do argumento sempre que estão em primeiro plano.
O humor é, aliás, uma espada de dois gumes com piadas a falhar redondamente e outras a acertar no alvo inúmeras vezes, usando os sotaques, slapstick, a confusão com a tecnologia, o envelhecimento, os clichês do género e a nostalgia do original para as gargalhadas mais sonoras. Existem outros temas mais polémicos que não resultam tão bem como o sexo, relações com age gap ou humor de “casa de banho”, sempre no limiar do bom gosto, que tem de ser destacado pela coragem de o tentar num filme mainstream. Nota final, no lado cómico, para mais uma interprete hilariante, Vanessa Bayer, alumni de Saturday Night Live (1975-) durante vários anos, que alia um instinto cómico fora do comum a um cocktail de desconforto, silêncio e uma creepyness inesperada, do qual não se espera riso, mas que constantemente nos surpreende.
Além das suas personagens o argumento coloca todas as cartas na nostalgia e na celebração do tão amado original. Desde o regresso de praticamente todo o elenco secundário original, com destaque para Mark Harmon, como Ryan, a âncora segura de Tess; Chad Michael Murray, como Jake, ainda mais “freaky” que no original, e um lendário Mr. Elton (Stephen Tobolowsky), o sádico e odioso professor que parece não se querer reformar, que continua hilariante. Para além de muitos mais regressos esperados, e outros não tanto, é na manutenção do equilíbrio entre comédia e drama, na proporção certa, que nos transporta para o que sentimos na viagem anterior. Arrisco mesmo dizer que o lado emocional está mais bem trabalhado, conseguindo emocionar até o mais empedernido de entre vós. Consegue-o com o coração no lugar certo, o perfeito escalar de tensão, e uma dinâmica familiar fácil de nos relacionarmos, adaptada aos tempos actuais. Existe uma sequência fenomenal numa loja de discos que importa destacar, onde se usa elementos pictóricos de LP’s como subterfúgio emocional e uma descarga cómica de clichês que se estranha mas que eleva o espírito de nostalgia a níveis estratosféricos – “Millenials, prepare yourself for liftoff”.
Nem tudo são rosas, com particular destaque para inúmeras cenas falhadas na escola, a puxar demasiado no clichê, numa repetição de momentos do filme original escusados ou secundários, sem um pingo de carisma, no elenco mais novo. Manny Jacinto, a melhor parte da falhada série de Star Wars, The Acolyte (2024), aqui é um interesse amoroso unidimensional, com uma sequência de dança impressionante, há que admitir, mas não deixa de ser um enorme desperdício de talento. A nível técnico é tudo desapontante desde a edição medíocre, tudo muito mecanizado e sequencial sem chama ou vontade de arriscar. A nível visual temos explosões e familiaridade na paleta de cores escolhida, mas o cinema não mora aqui de todo. Admito ter problemas sérios com a banda sonora e com as músicas do original por isso o upgrade sonoro e a produção mais trabalhada é bem-vinda, mas a qualidade não é mais que sofrível. Quem cresceu com a música, e é fã das Pink Slip, vai adorar o regresso de toda a formação original mas os restantes mortais vão desligar nos momentos musicais – abençoados solos de guitarra que atenuam a “poluição” sonora e as letras básicas.
Freakier Friday carrega forte no factor nostálgico e emocional da narrativa sem esquecer o equilíbrio cómico presente no original. Nem sempre é certeiro nas escolhas humorísticas e perde-se, ocasionalmente, em tentar cumprir todas as expectativas dos fãs, em vez de concentrar a narrativa no essencial, mas é bem-vindo considerando o panorama actual nas salas de cinema, vazio de comédias familiares.
Ps: Abençoado regresso dos bloopers da rodagem no final do filme. Tinha saudades.