Antigamente, a internet era somente um reservado canto da sala. Existia uma distância psicológica e física deste universo online, estando apenas disponível durante umas horas do nosso dia. Agora, a internet está no nosso bolso. É impossível fugir ou separar estes espaços. Quando sangra, derrama pelo corpo, manchando os nossos passos e o nosso mundo. Eddington é uma jornada à hemorragia desta geração.
Criador dos grandiosos Hereditary (2018) e Midsommar (2019) e do subvalorizado Beau Is Afraid (2022), Ari Aster regressa ao período de pandemia de 2020, governado por medo, incompetência e por rebeldia ignorante, para um shot de Western contemporâneo, de comédia negra absurdista, sátira política e de um thriller ferozmente violento. Uma experiência cinemática profundamente desconfortável sobre como dois vírus paralelos destruíram o nosso planeta.
Na cidade fictícia de Eddington, em pleno lockdown, o asmático Xerife Joe Cross (Joaquin Phoenix) acredita que as máscaras são desnecessárias, apesar da insistência do Mayor Ted Garcia (Pedro Pascal) e dos seus pedidos de consideração pela restante população. Joe não é o único. Uma ida ao supermercado para comprar medicamentos à sua mulher mais jovem, Louise Cross (Emma Stone), é suficiente para decidir candidatar-se ao cargo de Mayor, com a intenção de libertar os corações das pessoas, mencionado numa campanha improvisada gravada no seu smartphone em meros minutos. Decisões importantes com uma facilidade inédita; basta premir um botão e uma vida inteira é criada ou desfeita. Garcia pede a Cross para desistir, referindo que o Xerife está prestes a ser humilhado, oferecendo uma atenciosidade suspeita. Na verdade, Ted precisa de vencer esta eleição para prosseguir nos seus planos de construir um centro de dados em Eddington, com uma companhia de inteligência artificial intitulada SolidGoldMagikarp (AI, I choose you!), que garante milhões de dólares ao Mayor democrata desta cidade sulista. Inicia, então, uma guerra patética pelo futuro desta pequena localidade isolada em New Mexico.
Aster prossegue na sua exploração da ansiedade e da confusão que dita as nossas vidas, com um sentido de humor diabólico, em Eddington. Desde as referidas máscaras, a brutalidade policial, o movimento do Black Lives Matter, a ascensão fogosa de teorias de conspiração, e a batalha entre factos e crenças, entre esquerda e direita e entre humano e digital, o cineasta recusa a ignorar o que preferimos esquecer. O brilhante argumento analisa esta estranha hodiernidade, sem espaço para sinceridade ou comunicação, onde tudo (sejam motivações bondosas e respeitáveis, uma necessidade de ofender e atacar, ou os próprios sentimentos de felicidade, tristeza, raiva e desgosto) cai no performativo. Naturalmente, tudo é uma performance porque estamos sempre a ser filmados. A épica, todavia contida, fotografia de Darius Khondji, equilibra a poética visão cinemática dos Westerns com enquadramentos que estabelecem uma permanente sensação de vigilância, onde o gatilho de um Iphone carrega uma carga sonora mais potente que uma arma. Como um Norman Rockwell a produzir quadros emblemáticos do americana durante a pandemia ou um Edward Hopper transportado para os tempos modernos, Khondji e Aster capturam um completo e preciso panorama da presente condição dos Estados Unidos da América.
Eddington é uma obra ambiciosa e destemida na sua densidade temática, com inúmeras ideias e um extensivo ensemble cast, que arrisca ficar perdida entre a sátira, o terror e o comentário social, devido ao seu profundo detalhamento narrativo. A edição absolutamente impecável de Lucian Johnston impede essa desordem, estruturando o caos com elegância, mantendo o ritmo absorvente, e organizando uma história que corre em diversas direções com um olhar astuto que demonstra uma única estrada a conectar todas estas divergentes vias: a identidade americana. A composição musical, produzida por Daniel Pemberton e Bobby Krlic, usufrui desta associação com o mito magnificente dos clássicos Westerns, vidrados numa imagem gloriosa, aventureira e heroica, para engrandecer ironicamente as suas personagens nas suas introduções, até, eventualmente, ridicularizar essa visão cultural ao perseguir o elenco (e o público) com uma sinfonia aterrorizante que posiciona o ambiente à beira da escuridão, num suposto eterno pôr-do-sol melodioso. O terceiro acto é harmoniosamente equivalente ao fumo de uma metralhadora, que espalha pelos céus até cobrir a luz da noite.
É um filme que compromete também um possível fim de carreira, ao alienar os restantes admiradores apaixonados do realizador, com uma história sobre o ponto de ebulição que dividiu o povo estadunidense. Para a mente distraída ou reacionária, seria fácil proclamar que Aster está numa onda centrista de: “Everyone is stupid except me”, criticando ambos os lados e determinando o seu peso como idêntico. Aster, sendo um mad man disposto a saltar do precipício, com um sorriso inquietante no rosto, efectivamente diverte-se a provocar a sua audiência com piadas burlescamente sombrias durante os primeiros dois actos, acerca da ingenuidade juvenil – proferindo monólogos claramente retirados das redes sociais, desprovidos de noção do seu significado –, e da ignorância e egoísmo adulto – as suas batalhas aliadas apenas a uma bandeira de interesses próprios. No entanto, entre o absurdo da gritaria e das luzes dos smartphones, o artista reconhece a razão, constatando que apenas um dos trajectos culmina em violência. Basta prestar atenção e olhar para a imagem horizontal, invés da vertical.
O cineasta não pretende arranjar soluções ou curar a mente humana. Eddington não é uma vacina. Nem uma doença. É uma fotografia grotescamente hilariante e assustadora disfarçada de caricatura. Aliás, Aster nunca retira a humanidade das suas personagens. Odiosas, repelentes, irritantes, são seres humanos arrastados pelo trágico timing de uma sociedade em colapso, como consequência da evolução tecnológica, repentinamente perante um trauma global, a depender desta para sobreviverem, para impedirem as suas mentes de serem alastradas para crises existenciais. Um elemento que o elenco encarna perfeitamente, especialmente Joaquin Phoenix, com uma brilhante performance de um homem patético, desesperado por preservar uma imagem de masculinidade, controlo e lógica. Nesta cidade, todos estão divididos, contudo, conectados através da ansiedade, do medo e da impotência.
Hindsight is 2020. Esta frase perfeita, utilizada no marketing do filme, recorda que Aster tem uns anos de avanço, permitindo examinar o passado, o presente e o nosso possível futuro. Se Eddington é um espelho da nossa actualidade, Aster sugere que existem peças perdidas que nunca mais serão recuperadas; que a internet parou de ser um reflexo do mundo – agora, o mundo é um reflexo da internet; e que já não temos sangue para escorrer mas continuamos perdidos a lutar, enquanto companhias multibilionárias substituem o nosso coração por um dispositivo artificial.