Crítica | Barbaque (2021)

Se o Hannibal Lecter e o Ljubomir Stanisic criassem juntos uma receita de francesinha.

Sabem aqueles filmes que começam como uma comédia negra com protagonistas imperfeitos, aos poucos investem numa forte sátira social e, antes que percebamos, já somos cúmplices dessas personagens questionáveis? Pois Barbaque, ou em português, Mal Passado Sabe Melhor é exatamente isso, um buffet cinematográfico onde o humor é preparado seguindo a receita que nunca falha da comédia francesa, mas com uma bela de uma pitada de terror que lhe dá um gosto diferenciado.

O filme, realizado e protagonizado pelo humorista Fabrice Éboué, segue Vincent (o próprio Éboué) e a esposa Sophie (Marina Foïs), um casal dono de um talho a raspar os últimos restos de recursos para evitar a falência. Indo de mal a pior, ativistas veganos atacam a sua loja deixando-os numa situação verdadeiramente dramática. Um dia, num acidente tão absurdo, acabam por matar um desses ativistas, mas em vez de chamar a polícia, Vincent decide ver-se livre do corpo ao transformá-lo num pedaço de fiambre que pretende deitar fora como restos do seu negócio. Por ironia do destino, a sua esposa vende umas fatias que rapidamente se tornam quilos e que acabam por tornar as provas do crime numa iguaria que faz disparar as vendas, com toda a gente à procura do sabor inigualável do “porco iraniano”.

Estamos basicamente a “comer” uma mistura de Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street (2007) com um clássico da comédia de humor negro francesa Delicatessen (1991), com uma forte crítica social e cultural, servida como uma bela francesinha carregada de questões morais, familiares e de classes, cobertas por um molho picante de situações hilariantes e por vezes de violência explicita.

Marina Foïs é excelente como a esposa cansada da vida cinzenta e de um marido sem ambição, e que no surgir da oportunidade não pensa duas vezes em aproveitá-la. Éboué, por outro lado, assume o papel de homem desesperado que luta com os seus demónios internos, a meio caminho entre anti-herói, e que relutantemente tem de cortar nos moralismos e seguir o único caminho que lhe resta. A química entre os dois atores é extraordinária e sem dúvida alguma é a mesma que faz o filme atingir todas as notas altas do palato.

Situado num ambiente francês mais rural, Barbaque consegue contrastar o sereno pitoresco, contra as situações grotescas que vão escalando cada vez mais. Não há medos de mostrar sangue, porque o próprio filme não se leva a sério demais, com o tom de sátira sempre em destaque, resultando nesta apetecível comédia canibal.

E é com essa mesma sátira que o filme se destaca, porque por baixo das piadas mórbidas e do absurdo crescente, há uma crítica genial ao consumismo, à hipocrisia alimentar, ao radicalismo dos dois lados (tanto os veganos ativistas como os carnívoros fanáticos) e também ao desespero de uma classe média em crise. Nada disto é forçado, muito pelo contrário, o filme é servido como uma refeição completa com direito a entradas, prato principal, sobremesa e até mesmo um digestivo, dando tempo ao espectador para apreciar cada sabor, sem nunca se aborrecer de comer, nem tão pouco de passar fome de substância.

Podemos sentir em Barbaque um cheirinho do humor negro concentrado num universo pequeno e fechado como em In Bruges (2008) ou mesmo Fargo (1996), quase com apontamentos de Balas & Bolinhos (2001), na energia anárquica e independente que transmite, mas verdade seja dita, com uma qualidade de absurdo que consegue tocar num Monty Python: The Meaning of Life (1983). Tudo à francesa, com os seus muito próprios diálogos afiados e aquela leveza cínica e charmosa que eles tão bem conseguem fazer.

No entanto essa leveza por vezes chega a ser um ponto fraco, porque ao contrário de Delicatessen, falta-lhe um pouco mais de ousadia e risco narrativo. O filme tem bom aspeto, as piadas e a profundidade das personagens estimulam todas as sensações, mas falta-lhe um pouquinho mais de picante que pudesse elevar os momentos loucos a algo verdadeiramente inesquecível, embora seja compreensível que da maneira que foi servido, o filme agradará a um maior publico geral.

Ainda assim, é como uma lufada de ar fresco ver um filme europeu pegar num tema tão macabro e transformá-lo numa comédia negra tão digerível. Surge em plena pandemia, numa Europa cansada, em crise económica, polarizada por extremos, mas que brinca com tudo isso de uma forma contrastante com os blockbusters e franchises de Hollywood, apostando em mensagens fortes, com baixos orçamentos e acima de tudo de forma criativa.

É pena que o filme não seja muito conhecido, mas ao mesmo tempo replica aquela maravilhosa sensação de encontrarmos um restaurante ao calhas, pedirmos um prato do qual não temos quaisquer expectativas, e que acaba por nos dar não só uma refeição como uma experiência, que certamente nos fará voltar para experimentar uma outra coisa nova.

4/5

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