Depois de inaugurar o Festival de Cannes em 2024 com Le Deuxième Acte (2024) e de apresentar o megalómano Daaaaaalí! (2023), com exatamente este número de “a”s, ambos marcados por uma forte componente meta, Dupieux traz-nos agora uma narrativa mais convencional, próxima da típica comédia francesa. “Típica” talvez seja uma hipérbole, porque quem conhece o percurso do músico tornado realizador sabe que qualquer filme seu terá sempre um certo toque de absurdo.
L’accident de Piano relata a história de Magalie (Adèle Exarchopoulos), uma celebridade da internet conhecida por publicar vídeos chocantes, que decide fazer um retiro para as montanhas dos Alpes suíços com o seu assistente Patrick (Jérôme Commandeur), depois de um acidente de que nada sabemos. Mas essa paz é interrompida quando começa a ser chantageada por uma jornalista.
A narrativa vai desvendando o mistério à volta de Magalie de forma gradual. Primeiro, apenas sabemos que é alguém importante e que houve um acidente; depois, descobrimos que é uma celebridade com fãs obcecados e, só durante a entrevista, chegamos à conclusão sobre o tipo de vídeos que faz. Este desdobramento narrativo apimenta a curiosidade do espectador, mantendo-o na expectativa do próximo detalhe do mistério.
Dupieux consegue sempre retirar o melhor do seu (quase sempre) excelente elenco, seja Jean Dujardin em Le Daim (2019) ou Raphaël Quenard em Yannick (2023), e aqui Adèle Exarchopoulos não é exceção. A atriz já tinha colaborado com Dupieux em filmes insólitos como Mandibules (2020) e Fumer Fait Tousser (2022), mas é em The Piano Accident (título global) que demonstra toda a sua versatilidade cómica. Não consigo contar a quantidade de vezes que a audiência do MOTELX foi levada a gargalhadas apenas com as suas expressões faciais. Jérôme Commandeur, habituado à comédia francesa, completa o duo com uma presença sólida que equilibra o caos cómico de Adèle.
Infelizmente, a componente visual é constantemente lesada nos filmes de Dupieux. O foco no conceito e a rapidez com que tem lançado filmes refletem-se no rigor técnico. Apesar de haver planos competentes aqui e ali, nota-se o desleixo nos cenários, nos ângulos de câmara e na própria composição visual, que raramente ultrapassa o funcional e transmite uma sensação de inacabado. Não que o filme pedisse muito mais, mas o que desaponta é a falta de ambição do realizador, sobretudo porque o potencial está lá.
Finalmente, o conceito. Uma forma pragmática de descrever a abordagem de Dupieux é dizer que parte sempre de um conceito absurdo e pergunta: “e se isto acontecesse?”. Em Yannick a questão é: e se um homem interrompesse uma peça de teatro? Em Rubber (2010): e se um pneu ganhasse consciência e começasse a matar pessoas? Em Le Daim: e se um homem se tornasse obcecado pelo seu casaco de camurça? The Piano Accident não foge a esta lógica mas a revelação fica para quem for ver o filme.
A obra pretende ser o retrato de uma sociedade em decadência, na qual a insensibilidade à dor alheia se torna fetichista, a imagem supera a realidade ocultada, e a empatia é substituída pelo prazer mórbido de observar a tragédia dos outros. Seguindo os passos de Sick of Myself (2022) e Do Not Expect Too Much from the End of the World (2023), integra a lista de filmes que exploram a cultura do espetáculo e denunciam uma sociedade obcecada com a autoexposição, transformando a dor e a humilhação em moeda de troca. Tudo isto são temas que Dupieux já explorou, mas nunca de forma tão coesa e tão bem integrada na história, sem precisar de artifícios meta-narrativos, que apesar de interessantes, se sentiram a mais no seu último filme Le Deuxième Acte.
No fim, The Piano Accident confirma tanto os vícios como as virtudes de Quentin Dupieux: uma imaginação inesgotável capaz de transformar premissas absurdas em narrativas irresistíveis, mas também uma certa negligência formal que limita o impacto das suas obras. Ainda assim, a combinação entre o humor desconcertante, a sátira social e a energia do elenco, em particular de Adèle Exarchopoulos, garante uma experiência que diverte e provoca em igual medida. Não será o filme mais ousado do realizador, mas é talvez o seu mais equilibrado, provando que mesmo dentro da simplicidade conceptual há espaço para rir, pensar e, sobretudo, reconhecer o espelho distorcido da sociedade que Dupieux nos coloca à frente.