Dentro das profundezas de um castelo branco, ultrapassando os muros de neve caída, arrombando as portas criadas com rajadas de vento, perseguindo o negrume desta via láctea, e subindo pelas escadas de granizo até o topo de uma misteriosa torre, encontramos uma estranha figura cristalina, escondida no seu brilho. Enfeitiçados pela sua imagem nívea, caminhamos em passos flutuantes na sua direção, entregues à sua eternidade, sem conseguirmos avistar o ponto vermelho a piscar atrás da sua luminescência.
Corta! Regressamos à realidade, com figurantes a repousar, um realizador em lamúrias e uma actriz a abandonar os cenários. Arthouse Frozen seria uma forma demasiado simplista de resumir esta experiência mas acredito que consegue vender o peixe fresco e evitar quem prefere uma refeição congelada ou sushi de supermercado. Portanto, let go os vossos bonecos de neve porque o novo filme de Lucile Hadžihalilović é uma obra propositadamente vagarosa, fria e distante sobre a fantasia autodestrutiva, todavia cintilante, do cinema e dos contos de fadas.
La Tour de Glace é uma reinvenção da icónica narrativa de Hans Christian Andersen, inserida num contexto metatextual, onde uma adolescente órfã Jeanne (Clara Pacini) afaga as suas mágoas ao reler esta sua história favorita. Apesar do seu amor pela sua meia-irmã, o seu corpo persiste em descobrir a sua mente perdida, fugindo de todas as suas casas à procura de algo que nem ela parece saber. Possivelmente, a sua mãe ou o místico lar que imagina nas suas noites. Durante o seu percurso solitário, Jeanne encontra asilo num estúdio de filmagens marcado por uma magnética e intensa presença: A Rainha da Neve – Cristina (Marion Cotillard), uma famosa actriz diva completamente afundada nesta sua personagem, frustrada com esta produção. Sem uma cama onde dormir, a adolescente decide participar nesta versão cinemática da fábula, The Snow Queen, adoptando um novo nome e passando, então, a habitar metaforicamente no mundo que sempre ansiou. No entanto, o seu rosto delicado e a sua forte afeição por esta Rainha, atrai a atenção de Cristina, que avista, em Jeanne, um coração puro.
Lucile Hadžihalilović elabora uma atmosfera hipnotizante, embalando o público entre o sonho e a realidade, como se o próprio filme fosse criado pela Rainha de Neve, a aliciar o espectador com composições maravilhosas, uma fotografia espiritual, e uma envolvente banda sonora similar a uma lullaby, que começa como uma melodia tocante até ser transformada numa arrepiante tragédia quando o feitiço perde o seu efeito. É um acto de magia. Jeanne está finalmente a viver o seu sonho, aliás, o mais próximo de um sonho: um filme. É assim que La Tour de Glace representa a sétima arte: como um espaço metafísico, onde uma actriz procura encarnar inteiramente a sua personagem e uma adolescente, ainda no processo de compreender os seus sentimentos, desejos e identidade, rouba um nome para poder pertencer a esta fantasia; interpreta uma personagem, acreditando que a sua pessoa é insuficiente para o lar dos seus sonhos.
Como seguimos somente a perspectiva desta jovem, uma distância permanece entre as duas figuras: Cristina está no topo da torre, mesmo quando ambas partilham o mesmo espaço. É criado um ambiente espectral através da sua relação, como um conto de fadas. Fazem trocas de posses; objectos importantes são encarados como recompensas; Jeanne tem de enfrentar e superar desafios para receber a aprovação, o contacto e o suposto amor da Rainha. Obviamente, elementos narrativos naturais para uma fábula. Contudo, Lucile Hadžihalilović rasga estas páginas para demonstrar o seu corrosivo significado dentro da nossa realidade. A forma como a fantasia consegue ser um conforto para nós mas uma arma de manipulação para os outros, pronta a ser disparada.
Cotillard captura perfeitamente este conceito com uma performance intimidante, sedutora, formosa e assustadora. O seu passo, apenas o seu passo, consegue ser cativante e absorvente. Percebemos imediatamente o fascínio de Jeanne, como também a paciência da restante equipa de filmagens face às suas birras e discussões alheias. Nós queremos cair nesta armadilha colorida, sangrar pela neve enquanto somos deslumbrados pela atenção, pelo olhar de Cotillard. Uma recordação do seu extraordinário talento. Ainda assim, é necessário apontar também a estreia fantástica de Clara Pacini como actriz, equilibrando incrivelmente as características fantasiosas da sua protagonista com uma quietude humana; a sua taciturna inocência – presente durante as filmagens, quando perde a sua mente na fantasia – combate contra a dor do seu passado, uma que presenciamos em detalhes comportamentais nunca mencionados abertamente. Sentimos o seu medo palpável de perder – e experienciar – o amor que desesperadamente carece. Queremos ver esta jovem a voar mas, no fundo, sabemos o destino para quem não tem asas.
The Ice Tower (título globalizado) é um conto sobre o delicioso veneno da fantasia, dos contos de fadas, e do cinema. Uma exploração da forma como a autodescoberta, sexualidade e o crescimento juvenil são incapacitados por castelos reinados pela frieza adulta. Aqui, a morte é apagada e a beleza parece eterna, distante do nosso toque. Afinal, a câmara é um espelho de gelo. Frio e bonito, como Jeanne menciona. Quando a torre finalmente revela a sua fragilidade, compreendemos que a nossa existência nesta crua realidade, onde todos com poder são reis, nunca vai atingir um felizes para sempre. Apenas podemos tentar impedir que esse veneno seja espalhado pela neve derretida.