Entrevista | Rosa Coutinho Cabral – Realizadora de “A Mulher que Morreu de Pé”

Com uma obra que atravessa o cinema, o teatro e a escrita, Rosa Coutinho Cabral construiu um percurso artístico marcado pela liberdade formal, pela dimensão autobiográfica e pela urgência de intervir no real. O seu mais recente filme, A Mulher que Morreu de Pé, surge no centenário do nascimento de Natália Correia e afirma-se como um ensaio cinematográfico híbrido, entre documentário e ficção, em que a realizadora convoca múltiplas vozes, arquivos e presenças para revisitar a figura da escritora açoriana. Mais do que um retrato biográfico, o filme propõe um encontro vivo e inquieto com a obra e o pensamento de Natália, explorando o seu gesto poético, político e visionário, sem esquecer fragilidades e sombras que a tornam ainda mais humana e indomável. A partir da sua própria insularidade e de uma visão assumidamente pessoal, Rosa Coutinho Cabral constrói uma homenagem que é também uma reflexão sobre a memória, a liberdade e o poder da palavra.

Nesta entrevista com o Fio Condutor, a realizadora fala do seu processo criativo, da relação com o legado de Natália Correia e da importância de resgatar a sua voz para o presente, num tempo em que se impõe, mais do que nunca, o grito de resistência contra o esquecimento e contra as forças que ameaçam a democracia.

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Fio Condutor: Quem é Rosa Coutinho Cabral? Como se apresentaria enquanto artista e o que a move no seu percurso criativo?

Rosa Coutinho Cabral: Eu não sou ninguém para além do meu trabalho. E o meu trabalho é o cinema, o teatro, a escrita e algumas incursões na pintura e na instalação performativa. Só o trabalho é que conta. E o trabalho que se materializa no processo da minha experiência é movido pela urgência ditada também pela realidade. Tenho de agir e fazer com as minhas próprias mãos.  Como se fosse um carpinteiro a fazer uma cadeira, um marceneiro a trabalhar um retábulo, um escultor a moldar o mundo. Não passo de semear formas a partir dos meus ensaios. Ou a cuidar delas como se fossem o rebanho que é preciso tomar conta. Experimentando e ensaiando… É isso que faço: ensaios, per si caracterizados pela liberdade conceptual e formal. Ensaios da minha voz, afinal. O processo criativo é sempre autobiográfico, aberto e nada dependendo de leis, regras ou qualquer lógica. Reflecte a constelação possível  entre materiais potenciais colagens, montagens, projectos poéticos, intensificando relações semânticas entre planos da peça de teatro, do filme, materiais do arquivo… suspendendo e decantando a personna dramatis que a morte não derruba: e que fica para sempre entre nós: a cicatriz e a impressão digital de Natália. O processo pertence-me, mas o resultado, a obra, já não me pertence – é do espectador, figura que prefiro à figura público – porque o espectador é individual, único, como um viajante que pode assistir aos filmes, às peças… diferente do consumo massificado e do turismo cultural. O espectador-viajante pode escolher e preferir a que obras dar atenção. Se forem as feitas por mim, deixam definitivamente de me pertencer. E nunca destinarei ao entretenimento.  

FC: Alterna entre cinema – tanto ficção como documentário – e teatro, explorando temáticas muito diversas. Como escolhe os seus projetos? Existem linhas comuns que a atraem para determinadas histórias e meios de expressão?

RCC: Creio que sim. O que me interessa, cada vez mais, é que os filmes que faço, permitam aos espectadores conviver com o processo do filme. Com aquilo que é próprio do cinema. Com a “missão” do filme enquanto ensaio cinematográfico, e não apena com a mensagem tratada narrativamente. As narrativas interessam-me cada vez menos. A forma como se trata um assunto é que me atrai. Para mim a ficção é sempre documentário e o documentário é sempre ficção. Fundamentalmente são CINEMA. Poderia dizer que os meus documentários acabam por ser uma ficção – porque são, de algum modo, a ficção da minha relação com o objecto do documentário. Nunca será a verdade, que de resto não existe. Nem o real, que só existe com a dimensão simbólica e imaginária – mas é sempre a minha perspectiva, tratada como um ensaio cinematográfico, à procura da forma cinematográfica dos assuntos que me vêm parar às mãos. O mais comum nos projectos é o facto de desde muito cedo – em diversos filmes – assumir que o realizador não é neutro, é parcial, intencional, pessoal, particular – daí que todos os filmes sejam autobiográficos. Nos meus filmes acontece que cada vez mais estou presente como corpo e como voz – como fantasma, poderia acrescentar, que gravita, ouve e perturba o filme. Às vezes os projectos vêm-me parar às mãos, como no caso de Cães Sem Coleira (1999), em que experimentei a parcialidade sem limites, e devolvi ao documentado a hipótese de se pronunciar sobre o filme, dentro do filme e de participar nele como actor, como eu própria participei como actriz na cena final. Foi muito especial. Este registo da minha presença continuou em Arrivederci Macau (2011), e em Pe San Ié (2018) com a minha voz. No entanto A Casa da Rosa seria projecto mais intenso do registo autobiográfico, porque é um filme sobre mim, comigo, com a minha voz, filmado por mim, apenas num décor: a casa que tive de abandonar por ter sido despejada. Mesmo noutros filmes, em que a ficção é o tronco principal, como Lavado em Lágrimas (2006) e Coração Negro (2017), o luto é quase sempre o motor: o luto por alguém, o luto de uma forma de vida, o luto por perder uma casa que sabe mais do mim do que eu dela… No todo sou atraída por certas situações de profunda tristeza, tristeza social diria, e por pessoas que de algum modo tenham um destino trágico e épico, por terem um idioma próprio são esquecidas em vida, quase diria mortas em vida, numa espécie de crime cultural, e que valem como Natália, por perdurarem no tempo, ainda assim. Tanto podem estar vivas como mortas. Obviamente que o contrato que assino com elas é muito diferente. Assim filmar o António Feliciano ou o Manuel Vivente, foi muito diferente de filmar o Camilo Pessanha ou a Natália Correia, que não estavam cá para assinar o contrato… Mas percebi que gosto de fazer retratos. E que gosto de trabalhar   com muitos materiais para me aproximar daquelas pessoas. Como já respondi na primeira pergunta) – mais do que conviver com as pessoas que retrato, gosto de conviver com o processo de trabalho para a encontrar. Que é muito divertido e muito duro ao mesmo tempo. Porque procurar a marca de uma pessoa é um gesto arisco, árido, perfurador – é uma grande inquietação e ao mesmo tempo uma paixão alegre, como diria Espinoza.

Filmar não é uma acção neutra, é uma questão de gosto, por isso repousa nas escolhas técnicas e artísticas a escrita deste documentário. Os planos de cinema fazem-se, experimentando-os, como a escrita se faz escrevendo. E, neste processo, não pretendo formular uma gramática, mas sim definir o tom do filme que aceite a encenação da minha intromissão no passado de outra pessoa que emerge no presente – que aceita a potencialidade mítica do real, tão ao gosto da Natália…” (press kit promocional)

FC: Qual a sua relação pessoal com a obra de Natália Correia? Qual foi o primeiro contacto que teve com a sua escrita?

RCC: Não posso saber, honestamente. Creio que foi a poesia, sobretudo a Queixa das Almas Jovens Censuradas, cantada pelo José Mário Branco. E a Paloma, que ouvi na televisão e outros poemas que ela declamou na RTP… é engraçado porque primeiro ouvi e só depois é que li… Quanto aos livros creio que os fui descobrindo à medida que fui crescendo, intelectualmente falando, e destaco A Madona, porque é um romance incrível sobre os anos 60, em Portugal e na Europa, e a construção de uma mulher jovem e independente. Num tempo de opressão e conservadorismo.  Gostei muito deste livro na altura em que o li… e gostei muito de toda a poesia, que li em livros dispersos, sobretudo Comunicação, O Vinho e a Lira… mas só consegui ler tudo, e acho que li tudo, para fazer o filme… aí descobri verdadeiramente como é que a Natália escrevia, pensava e usava as palavras.

FC: Sente que a voz de Natália impactou o seu trabalho e a sua visão artística, se sim de que forma?

RCC: Conviver com a sua obra foi determinante para encontrar o tom deste filme. Deixar-me guiar pelo seu tumultuoso gesto e mergulhar no seu arquivo: diários, vídeos, entrevistas de rádio, espólio fotográfico… conviver com a sua forma de trabalhar e pensar… ser influenciada pela sua ideia da poesia como a procura de um ponto anamorfótico, livre de prisões formais ou conceptuais, que não obedece à lógica mas ao fluxo emocional de secreto do pensamento… procurar uma forma cinematográfica ensaística, muito livre. Livre de um guião por exemplo. Voltar a alguns filmes como Arrivederci Macau, Pe San Ié, em que só tinha cadernos de notas e voltar sobretudo ao que queria fazer como no meu primeiro filme. Foi uma luta inglória com a equipa que queria um guião tradicional, e não o meu cadernos de notas e a minha vontade de me inspirar pelo que acontecia à minha volta. Se sensível à inquietação que vem das pessoas e dos lugares. Não há pressupostos ideais, mas um jogo, e um gesto poético e político que é da ordem da experiência – experimentar fazendo. Rodando várias vezes… em momentos diferentes… intercalando com a montagem onde se sofre imenso… escolhendo, voltando à rodagem e melhorando… é uma condição gerúndica da experiência… é uma escrita contínua da experiência cinematográfica… A verdade é que eu soube desde sempre como queria trabalhar – com pessoas próximas, poucas. Com uma família alargada que confie na minha improvisação, procura, e poder descobrir com outros filmes, pinturas, livros… para além de uma narrativa fechada, de um guião pré-estabelecido… e responder à vida!

FC: Existe algum poema ou texto de Natália Correia que a tenha marcado de forma especial? Em que medida influenciou a sua sensibilidade para a criação de A Mulher que Morreu de Pé?

RCC:  Por causa do tempo em que vivemos – o perigo da extrema direita, o perigo eminente de uma guerra horrível, o que se passa – em Gaza, e na Ucrânia, e…  escolho a Queixa das Almas Jovens Censuradas. E a Ode à Paz.

FC: A “açorianidade” de Natália Correia surge de forma transversal na sua obra e também no filme. Sendo igualmente açoriana, sente que esse enraizamento insular lhe permitiu criar uma ponte de intimidade particular com a autora?

RCC: “Considerando como Novalis, que toda a poesia é étnica, porque profundamente ligada à língua, para Natália a espessura étnica que suporta a poesia, como língua de todos os poetas, é o húmus natal açoriano. É aquela açoreanidade – palavra acarinhada por Nemésio – que dá corpo à condição cultural de ser açoriano – numa concepção de termos e palavras ditadas pela pronúncia e morrinha açorianas, que nos justificam no meio de um tão vasto atlântico. Uma língua perigosa: aqui somos muito diferentes porque o mar é que é decididamente o meu sangue. As neblinas, a chuva, as tempestades do mar arquipelágico… A língua, como Holderlein teve oportunidade de escrever, é um perigo… a cadência açoriana, as sílabas fechadas que mal deixam adivinhar o sentido a não ser na voz algo agressiva dos açoreanoas, é um arremesso poderoso que Natália parece ter tido sempre consciência.” (Press Kit Promocional)

Neste filme têm de encontrar-se duas reflexões, duas sensibilidades, duas dimensões subjectivas: a minha e a dela. Um fiapo coincidente do destino, porque viajar na vida que nos deixou Natália é, para mim que sou açoriana, mais que tudo, uma coincidência. Eu e Natália. Duas açoreanas que distam 33 anos uma da outra. Que viveram longe da ilhe e viveram o momento mais importante da história recente de Portugal: o 25 de Abril. Mas ela coabitou com os Deuses, inventou o seu mito fundador: Mãe-Ilha. O que quero, neste filme, é conviver com a minha Natália, que tinha saudades do seu húmus natal… que tinha saudades da sua mãe… que tinha saudades de qualquer coisa que a poesia foi capaz de entrever. E que espero que este filme seja capaz de espreitar… Um filme é sempre uma viagem. Algo insubmisso, como é a poesia.” (Press Kit Promocional)

FC: Como surgiu a ideia inicial para este documentário? Houve um momento específico que funcionou como gatilho para avançar com o projeto?

RCC: Sempre admirei a obra e posição política da Natália Correia. E achava que ela merecia ser tratada num filme… entretanto aproximou-se o centenário do seu nascimento. Preparei o projecto e concorri ao ICA. Não ganhei logo o subsídio, mas a dada altura consegui. O que tornou possível esta aventura. Depois aconteceu uma coisa engraçada, do ponto de vista orçamental. Dirigi-me ao Teatro Micaelense para pedir para filmar algumas cenas do casting poético no palco do teatro, e a Directora, a Maria José Duarte, convidou-me para fazer a peça e a apresentar no contexto do centenário, com uma conferência e uma instalação do Andreas Stoklein, e foi assim que a peça Colheres de Prata nasceu, como projecto autónomo e parte integrante do filme. Depois houve outro presente, o Carlos Melo Bento tinha um filme Super8 com a Natália nos Açores, que gosto muito, e usei quase integralmente no filme…. coisas inesperadas que não são um revólver de versos, mas quase!

FC: O filme começa com uma narração masculina que sugere uma biografia linear, mas rapidamente se afasta desse registo para explorar uma narrativa híbrida, cruzando teatro, cinema e literatura, numa construção distinta dos padrões documentais mais convencionais. Qual foi a intenção ao adoptar esta estrutura?

RCC: Criar um ensaio cinematográfico que não parte de nenhuma ideia preconcebida da Natália. Nunca ninguém saberá tudo sobre ela. O lugar de nascimento e morte ninguém lhe tira – mas o lugar simbólico e imaginário que ela ocupa na cultura portuguesa e nas pessoas que a admiram é infixo, plural, inconstante. Neste filme ela é uma figura que deambula num baile ao ritmo da poesia, não cronológico. As manchas narrativas bailam sem rumo aparente entre registos mediados pelo meu olhar elogioso, cúmplice, interpelativo – permitindo sobretudo abrir várias portas de entrada para o universo da vida e obra de Natália Correia. Não se pode “inventar” uma perspectiva única ou imaginar a verdade para falar desta mulher. É precisamente na liberdade de expressão que A Mulher que Morreu de Pé arrisca encontrar a liberdade que a movia… É esta a minha homenagem: dar a ver a forma cinematográfica da liberdade de Natália Correia. A estrutura reflecte antes de mais um posicionamento estético, ético, político – um gesto que relaciona “castings de actores, que nos apresentam as suas Natálias e amigos dedicados que a relembram. A persona dramatis, potencialmente infixa desta mulher vai-se revelando, escondendo, perturbando, olhando-nos numa pura fantasmagoria. E Natália irrompe como uma constelação de talentos geniais que ainda hoje surpreendem, assinando um gesto poético feroz, indomável, livre no real.” (Press Kit Promocional)

FC: Para além do espírito combativo e provocador, o documentário mostra também fragilidades, dúvidas e momentos sombrios de Natália Correia. Até que ponto era fundamental dar visibilidade a esse lado menos conhecido?

RCC: A intenção subliminar deste processo foi não a reduzir ao anedotário habitual e deixar ver a mulher talentosa, corajosa, que usava destemidamente a palavra como um gesto poético, ético e político: sem medo! Neste sentido, este filme é uma homenagem. Na realidade foi. Difícil saber o que dizer e como falar do seu lado negro e da sua vida sombria, sem cair num discurso de comiseração. Não acho que se possa ter pena da Natália. Eu pelo menos não quero ter. Admiração, divergência sim. Resgatar do esquecimento que o país lhe destinou, sim. É por isso que espero que este filme suscite vontade de a ler. É preciso ler os seus ensaios de profunda erudição, ler as peças de teatro, os romances, e sobretudo a sua poesia. Nela encontramos as chaves para ir ao seu encontro. À Natália de um enorme sofrimento, de uma enorme dor, de uma enorme alegria… de uma enorme tensão existencial que sempre a acompanhou. Tensão na sua bipolaridade política, livre de partidarismos no entanto, lutando contra a fome, a opressão e a liberdade fundamental em que assenta a defesa dos direitos humanos.

Porque a  memória serve para lutar contra o esquecimento, por isso é a mole de qualquer luto. Falar da Natália é falar de um tempo que não deve ser esquecido para que não se repita. Falar desta mulher é apontar o dedo cheio de versos e reivindicar que não se volte atrás. Porque falar desta mulher é falar de um tempo em que a ditadura e o fascismo enegreciam o país. Por issonunca me demitirei como sujeito que assina este filme. Nunca negarei a possibilidade de, no fim desta jornada, poder dizer: afinal gosto muito dela, ou não gosto nada; afinal nem gostava de a ter conhecido.  Mas de uma coisa estou certa – vale a pena conviver com ela porque, olhando-a, espelhamos o retrato de uma época que alterou para sempre a sociedade portuguesa. Por isso, a viagem que imaginei, porque cada filme é uma viagem, não tem eixos. Tem inúmeras situações com uma forma especial de acontecer, como se deslizassem no tempo – porque deslizam da minha observação directa do real e do presente para a de uma mulher do nosso passado recente: a Natália Correia.” (Press Kit Promocional)

FC: No processo de realização, trabalhou com actores e actrizes que encarnam múltiplas facetas da autora, mas também com amigos, arquivos e testemunhos. Como foi equilibrar estes diferentes materiais – ficcionais e documentais – para construir uma memória viva e polifónica?

RCC: Há muito não dito e dito ao usar as suas palavras, sobretudo as escolhidas pelos actores, na voz aos biógrafos e amigos que com ela conviveram mais de perto, e na sua voz presente nos materiais de arquivo.

FC: A Mulher que Morreu de Pé tem vindo a circular em vários festivais e recebeu o prémio de Melhor Documentário da Competição Nacional no Porto Femme. Como recebeu esta distinção? E de que forma tem sentido a reação e a receção do público, em particular das gerações mais jovens, que poderão ter uma ligação mais distante a Natália Correia?

RCC: Fico muito alegre cada vez que o filme é premiado, e naturalmente que para além dos prémios em festivais estrangeiros o prémio de Melhor Documentário da Competição Nacional no Porto Femme, foi uma grande recompensa e orgulho. Sinto que as pessoas convivem de algum modo com o processo do filme, seguindo emocionalmente aspectos da vida de Natália pouco conhecidos, mas sobretudo ficam com vontade de conhecer a sua obra. E isto é o melhor prémio. E o melhor prémio é  quando a equipa e os amigos reconhecem a importância do filme e ainda me dão o prazer de gostar dele.

FC: Para terminar, e numa nota positiva, gostaríamos de uma pequena reflexão sobre a forma como Natália Correia continua a habitar a sociedade portuguesa. Qual considera ser o maior legado da Mulher que Morreu de Pé?

RCC: Apesar de considerar que a Natália é um fantasma na cultura portuguesa e que não é especialmente amada. A voz de Natália e o poder da sua palavra, que ouvimos interpelando o presente, neste filme que é também a encenação da minha intromissão no seu passado, é uma voz incontornável pela liberdade, contra o fascismo, pela democracia. Assim, o maior legado desta poeta e escritora genial, é a coragem com que se assumiu antifascista toda a vida, lutando pela liberdade, pela cultura, pelos direitos das mulheres, direitos de autores e direitos humanos, armas fundamentais contra a viragem à extrema direita em Portugal, na Europa, no mundo… Hoje, a sua voz ouvir-se-ia em todo o lado e lutaria para que não se voltasse atrás e que não se esquecesse vergonhosamente a ascensão do nazismo nas primeiras década do século passado, que ela acompanhou desde que nasceu… Em plena ditadura entrevista Norton de Matos, faz parte da campanha de Humberto Delgado, do MUD apesar de ser censurada, quase presa, pelo seu trabalho editorial da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, e das Novas Cartas Portuguesas, de ser vigiada pela PIDE e ter livros censurados como O Vinho e a Lira , O Encoberto, Comunicação, O Homúnculo, entre outros, nunca desistiu de lutar contra a opressão. Mesmo no fim da vida, mergulhada numa grande solidão e quase sem trabalho porque os jornais, a rádio, os pares (não todos, naturalmente) lhe fecharam as portas, ainda escreveu Sonetos Românticos, uma obra poética de importância incontornável na literatura portuguesa. Mesmo na pior das adversidades, a sua voz nunca emudeceu em prol das causas políticas que defendeu e na poesia.

Natália Correia é um exemplo de luta revolucionário poética e política que nunca podemos calar. Viva a Natália Correia. Fascismo nunca mais!

 
 
Entrevista realizada por Pedro Ginja, João Iria e Sara Ló

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