Antes de existir Mindhunter (2017-2019) de David Fincher ou Silence of the Lambs (1991) de Jonathan Demme, Michael Mann (Heat, 1995, Miami Vice, 2006) escrevia e realizava Manhunter, um thriller policial psicológico que passou relativamente despercebido na altura. Trata-se, também, da primeira adaptação para o cinema dos romances da franquia Hannibal de Thomas Harris, neste caso Red Dragon de 1981.
A história acompanha o experiente e talentoso criminal profiler do FBI, Will Graham (William Petersen), que regressa da reforma para ajudar a apanhar um elusivo assassino em série. Apelidado de Tooth Fairy, este tem como alvo famílias felizes e só mata em noites de lua cheia. O conflito emocional central da narrativa surge do passado carregado do agente que, depois de ter sido incumbido de capturar o terrível Doutor Hannibal Lecktor (Brian Cox), sofreu um colapso nervoso provocado pelas técnicas imersivas e psicológicas que empregara no seu trabalho. Para tentar prever os próximos passos dos agressores, Will mergulha no psique e estado de espírito dos mesmos, esbatendo as linhas entre si e eles, entre o bem (as forças de segurança) e o mal (os criminosos). Acontece que, com Lecktor, Will levou estes métodos longe demais, levando-o a deixar o FBI e a refugiar-se, com a sua família, numa paradisíaca casa à beira-mar.
Através duma fotografia saturada e expressionista, de uma qualidade quase onírica, Mann demarca o fosso que existe entre a paz e a simplicidade da nova vida de Will e o caos e depravação da profissão da qual tanto tentou escapar. Will promete à sua esposa Molly (Kim Greist) que irá ter cuidado para não chegar a semelhantes extremos, mas o instinto e necessidade de se aproximar dos seus alvos leva a melhor. Afinal, o que é um detetive sem o criminoso que o motiva? Will teria um propósito sem os atos horrendos dos homens que investiga? Esta perturbação é tratada com um cuidado surpreendente pela parte de Mann, que enquadra o seu protagonista com o típico heroísmo e sentido mítico de outros agentes policiais da tradição cinemática, ao mesmo tempo que o dota de fissuras e tendências questionáveis e de uma abertura emocional importante. É de destacar uma conversa entre Will e o seu jovem filho, Kevin (David Seaman), que, apesar de não avançar a ação, nos permite empatizar e conectar com o protagonista. Um momento simples em que o tempo para e somos relembrados da sua humanidade.
Algo semelhante se passa quando finalmente conhecemos o homem-monstro que a polícia procura. Sem estragar as surpresas que Manhunter reserva, este ser, interpretado de forma desconcertante por Tom Noonan, tem tanto de animalesco como de humano. Esta é a ambiguidade que define o filme e os seus dois personagens principais.
Sendo esta temática a parte mais fascinante do argumento de Mann, não quer, por isso, dizer que o enredo do mistério policial e do trabalho analítico dos investigadores não seja igualmente apelativo. O realizador atinge todas as notas certas para criar um ambiente de suspense e de puzzle, principalmente quando mete Lecktor ao barulho. O famoso vilão do género de terror ainda não tinha, aqui, sido associado com o olhar psicadélico e esfomeado de Anthony Hopkins. Ao invés, somos presenteados com um Brian Cox mais comedido e tangível. É uma sinistralidade diferente, mais propícia a enganar e a entranhar-se.
Os fios cruzam-se e o plot complica-se, dispersando e distraindo os detetives, à medida que Mann revela, apenas ao espectador, quem é o verdadeiro culpado. O realizador dá-nos tempo com a próxima vítima do Tooth Fairy para criarmos laços e ficarmos ainda mais investidos na busca de Will e, principalmente, no sucesso da mesma. Ao mesmo tempo, Mann expõe informação q.b. sobre o serial killer para manter o espectador interessado, pondo-o em pé de igualdade com o talentoso agente do FBI e permitindo-lhe teorizar a seu lado. Ao deixar-nos entrar no covil do vilão, permite-nos uma maior imersão na história, mesmo que parte do mistério se desvaneça.
Esta busca de gato e rato, assim como o teor psicológico do filme, são pautados, a todo o momento, por uma trilha sonora muito ‘80s, carregada de synths e needle drops memoráveis tal como o uso da épica e psicadélica “In-A-Gadda-Da-Vida” de Iron Butterfly. A música é, na verdade, um Easter Egg para um assassino verdadeiro, Dennis Wayne Wallace, com quem Mann trocou correspondência durante anos e de quem retirou inspiração para a sua versão do Red Dragon.
Manhunter é uma jóia pouco conhecida no género dos thrillers policiais, com uma realização inovadora, inspirada, que corre riscos, e recolhe os proveitos. Mann aposta tudo na criação de uma atmosfera envolvente que tem tanto de crua e real como de estilizada e fantasiosa — uma mistura difícil de aperfeiçoar mas absolutamente crucial na criação de um bom filme psicológico. Mas o realizador entende, também, que a única forma de realmente mergulhar o espectador na história, da mesma forma que Will mergulha nas mentes dos seus suspeitos, é apostando no trabalho de personagem e na profundidade dos temas da narrativa. Por tudo isto, Manhunter é um dos melhores exemplos do género que habita, ainda que fique de fora da maior parte das discussões sobre o mesmo.