O novo filme de Kléber Mendonça Filho tem pressa em apresentar, em todo o seu esplendor, tanto o seu realizador como o país que o viu nascer. Desde sempre, no documentário ou na ficção, que as suas paixões transbordam em cada fotograma de celuloide. Está o seu intenso amor por cinema e pela preservação da sua história e, claro, o retrato social do Brasil que tanto ama. De uma paragem numa bomba de gasolina, no meio do nada, revela as verdades incómodas de um passado recente com ecos audíveis no presente brasileiro. Apresenta ainda Marcelo, interpretado por Wagner Moura, como um livro fechado prestes a ser desfolhado nos próximos 158 minutos. Quem será este homem e de que foge ele?
O Agente Secreto viaja até ao Brasil dos anos ’70 e à vida de Marcelo, um cientista em fuga de um passado de ameaças, e em busca de encontrar a sua própria paz na cidade do Recife, onde encontra refúgio. Encontra-o numa pequena comunidade de refugiados, onde partilham medos e inseguranças, enquanto anseia pela reunião com o seu filho e a felicidade há muito adiada.
A cidade do Recife é desde sempre, ou melhor quase sempre, o coração das suas histórias, e bem mais do que apenas um cenário. Um plano, em específico, fica na memória da beleza da cidade mas é nas entrelinhas, nos pormenores e nos interlúdios pessoais das suas gentes que esse amor transborda mais forte. Apesar deste forte “protagonista” da narrativa, é outro que a domina e o prémio ganho em Cannes não foi com certeza nenhum acidente. Wagner Moura é o herói e carrega essa bandeira bem alta. Um homem de princípios e convicções morais fortes, num tempo e local onde isso era visto como uma ameaça e prenúncio de morte. Wagner Moura infunde este Marcelo/Armando com uma estoicidade transbordante e planta, a cada instante que passamos na sua presença, o desejo de sermos como ele. Essa perfeição poderá afastar alguns, clamando um realismo baseado em relatos da época, mas o objectivo de Kléber Mendonça Filho é outro. Este homem é usado no argumento como um símbolo da própria luta do realizador com a perseguição política a que todos os artistas foram e são sujeitos quando querem colocar o dedo na ferida aberta da corrupção no Brasil. Uma luta ainda bem activa em todos os quadrantes da sociedade brasileira e que teve o seu auge recente durante a administração de Bolsonaro.
Para além do intenso comentário social há sempre uma procura pelo lado emocional de cada história. O que está em jogo para cada personagem está sempre em primeiro plano, seja para Marcelo, para cada um dos seus companheiros no refúgio ou mesmo para os vilões. É por isso lógico que o espectador fique investido em cada personagem e no destino que o argumento lhes reserva. Poderá ser acusado de ser demasiado simplista na visão “Bem vs Mal”, que surge sempre demasiado evidente, mas sente-se tão sincero e natural que é impossível resistir. A resistência perante as suas imperfeições na construção de personagens acaba por terminar porque este é um filme verdadeiramente cool. A principal razão para este facto é a reconstituição histórica pristina dos anos ’70 brasileiros no Recife em termos de cenografia, guarda-roupa, maquilhagem e penteados. Tudo isto conspira para nos transportar para uma outra era e realidade bem diferente da nossa.
O maior elogio será afirmar que no final todos os espectadores gostariam de viver naquele mundo, apesar de todos os ataques à liberdade, a corrupção galopante e a possibilidade de encontrar a morte ao virar da esquina. Estes momentos, apesar de tudo, não são muito comuns centrando a tensão num jogo de gato e rato entre Marcelo e quem o persegue, mas quando surgem são brutais, violentos e imbuídos de uma crueldade desarmante. Como já nos tem habituado nos seus filmes, existe aqui um imaculado uso da mise-en-scène sendo comum o sentimento de deslumbramento nas soluções encontradas para contar esta história. O final chega, em sentido contrário, usando a memória do passado e os ecos do presente para revelar o destino das suas personagens de uma forma minimalista mas emocionalmente impactante, e de como são veramente memoráveis cada uma delas, as que passam muitos minutos em frente da câmara assim como as que se desvanecem após meros segundos na nossa presença.
Há que elogiar o excelente casting, como a principal razão para este elenco extraordinário, escolhido na perfeição para cada um dos papéis. Existem alguns que se destacam ligeiramente mais, como o frio e calculista Augusto, um assassino interpretado por Roney Villela; Ghirotti, um político do sistema interpretado por um impressionante Luciano Chirolli onde o mal já entranhou de tal maneira que é uma segunda natureza, exacerbada pela humilhação que é sujeito pela personagem de Wagner Moura. Há também que se destacar o lado do bem, com a maternal dona Sebastiana, papel onde a actriz Tânia Maria projecta uma força extraordinária apesar da sua visível fragilidade física.
Para juntar ao sentimento de encanto com o filme podemos ainda contar com uma selecção exímia de canções desde êxitos brasileiros da época, como Ângela Maria onde domina o “Big Band Sound” centrado no romantismo, mas viajando também por clássicos americanos pop de Donna Summer e Chicago, o mestre Ennio Morricone, o vanguardismo psicadélico regional de Zé Ramalho e, claro, o samba brasileiro com um coração jazz de Waldik Soriano ou o eterno Waldir Gomes por terrenos mais clássicos. Sempre a música certa no momento certo.
Kléber Mendonça Filho regressa à ficção em grande estilo, com o coração nas mãos e com o dedo na ferida do passado brasileiro de autoritarismo e corrupção governamental. Os inúmeros fãs do realizador vão apreciar as constantes referências cinematográficas, a reconstituição de época exemplar e a ligação que o argumento cria entre o passado e o presente do Brasil. E parece-me pouco provável que vejam um filme com mais charme que O Agente Secreto nos próximos tempos. Amigos, o filme tem no seu enredo um carocha amarelo – I rest my case.