Quem somos online? Será este mundo electrónico terreno fértil para crescermos e encontrarmos a nossa identidade ou um enevoado universo tóxico com a capacidade de assistir a nossa autodestruição antes sequer de estarmos formados. Naturalmente, a razão responde com a procura do equilíbrio. Contudo, como pode uma mente adolescente, numa fase ditada pelo caos emocional, sobreviver a um cosmos desprovido de segurança ou ordem? Como é possível uma solitária voz ser resgatada de uma rede que aprisiona quem procura por conexão, oferecendo crueldade envolta em conforto. A primeira longa-metragem de Jane Schoenbrun, We’re All Going to the World’s Fair, explora o terror existencial da internet; a maneira como conseguimos desvendar a nossa individualidade – descobrir peças de um puzzle desconhecido –, saber quem verdadeiramente somos e sermos felizes nesta nossa nova pele, tão facilmente como conseguimos perder a nossa humanidade e desvanecer nos pixels.
Esta é a história de Casey (Anna Cobb), uma adolescente solitária a residir no meio de nenhures nos Estados Unidos rurais, que vive maioritariamente online. A sua rotina é a internet: as suas refeições são acompanhadas por vídeos de desconhecidos; a sua vida social depende de pessoas que desconhecem a sua existência. Para preencher (ou esvaziar) o seu tempo, Casey decide experimentar um desafio viral intitulado World’s Fair, que incentiva os jogadores a documentar as consequências psicológicas e físicas da sua participação – diversos jovens demonstram comportamentos bizarros atribuídos a este jogo, similar a um creepypasta mitificado. No caso de Casey, a realidade interfere com o monitor, sendo impossível diferenciar os dois mundos; reflectido nas suas estranhas filmagens que atraem a atenção de um homem preocupado com o seu declínio mental, convencido que a jovem está em perigo.
Actualmente, estamos habituados a algoritmos que empurram criações com milhares e milhões de visualizações, como uma espécie de aborrecida cadeia de fast food audiovisual, estabelecidos por companhias multibilionárias motivadas por características específicas – que demasiadas vezes retiram o mérito artístico –, para apaziguar os lordes da publicidade. Neste filme, Schoenbrun exibe interesse nos cantos obscuros deste ambiente – os vídeos soltos, sem visualizações –, expressões pessoais, tentativas fracassadas de alcançar alguém, indivíduos à procura de contacto através dos frames ou que encaram o ecrã como a sua única forma de conexão. Inevitavelmente nasce uma relação particular entre ser humano e tela; uma ligação com um vazio mascarado de amigo. Casey menciona que quando era criança, assistia filmes de terror antes de adormecer, atingindo um estado onde não conseguia reconhecer se estava acordada ou a sonhar. We’re All Going to the World’s Fair representa a internet como este limbo, entre o real e o imaginário – uma experiência simultaneamente libertadora como isoladora –, capturando a sensação de desaparecer num buraco negro online, e revelando a inconsciente vontade de caminhar até essa escuridão. Afinal, esse vazio pode ser tudo o que quisermos. Até paz.
Schoenbrun compõe a realização de We’re All Going to the World’s Fair como uma gravação perdida, descoberta décadas depois. O seu ritmo lento, todavia absorvente, combinado com a direção de fotografia desconfortavelmente íntima (repleta de webcams) e o aspecto degradado da sua estética camcorder, concebem uma imagem voyeurística que destaca propositadamente o vínculo entre audiência e filme, entre o observado e o observador; colocando o espectador como cúmplice deste horror. Intenso mas nunca directamente violento, o seu terror reside nesta relação, na sua atmosfera, nos seus visuais, na performance magistral de Cobb e no silêncio prolongado. A sua quietude consegue transportar o público para a aflição desta solidão e o desespero pela metafórica droga que permite mitigar superficialmente esta vivência, manifestada também na banda sonora melancólica de Alex G, ocasionalmente misturada com invulgares vozes afogadas no barulho, ruídos aberrantes a tentarem pronunciar palavras, à procura de serem ouvidos, ecos no fundo de um quarto; uma companhia para a nossa solitude.
Além destes fantásticos componentes temáticos, o argumento personifica subtilmente a experiência transgénero de descoberta antes do processo da “quebra do ovo”: quando finalmente compreendes que não és a pessoa que és. É estranho porque implica a desfragmentação de um ser, ainda distante do momento catártico de realização, a flutuar entre diferentes realidades: a sua e a do resto do mundo. Apenas consciente que está dentro de um casulo. E é assustador porque não sabe o seu futuro. Não sabe se o casulo será alguma vez aberto. Se vai continuar fechado até à sua morte ou ganhar asas. Perante esta actual agressão aos direitos da comunidade transgénero, We’re All Going to the World’s Fair utiliza o seu horror para apontar que a internet ajuda tanto quanto destrói. No entanto, a empatia e amor que o filme oferece a Casey recorda que todos merecem voar.
Numa estreia impecável, Jane Schoenbrun marca o seu impacto no cinema com um filme que define a era da internet e a sua natureza existencialista. Se uma pessoa não é observada, existe sequer? Online, somos meramente um ponto entre biliões. Seremos nós somente um conto para ser partilhado num futuro vídeo? Até onde estamos dispostos a caminhar para sentirmos que não estamos sozinhos? Uma sensação perdura nos créditos finais: já estamos dentro da feira, mesmo sem comprar o bilhete. É possível escapar? Provavelmente nunca seremos resgatados deste veneno electrónico. Portanto, resta admitir esta verdade e, esperançosamente, passarmos a reconhecer a humanidade nos pixels.