“I don’t understand you. But I love you.”
Não há maior dor que a de amar uma pessoa mas não a entender. Não conseguir compreender porque alguém sente o que sente e é como é, e tentar ajudá-la e decifrá-la, mas, ultimamente, nós somos exatamente como somos, quer queiramos ou não, e nem todo o amor do mundo às vezes chega para alterar isso. Sete anos após o lançamento de Peterloo (2018), Mike Leigh regressa à realização, com um filme brutalmente realista e humano, que mostra o dia-a-dia de uma família complexa enquanto contempla sobre raiva, medo, depressão e a inevitável resignação.
Hard Truths tem como palco a cidade de Londres e como foco principal Pansy (Marianne Jean-Baptiste), uma mulher terrivelmente inconformada, tão imersa na sua raiva com o mundo, que amarga todos à sua volta, desde as pessoas na fila do supermercado à sua dentista. Qualquer interação com o seu marido, Curtley (David Webber), e o seu filho, Moses (Tuwaine Barrett), torna-se num interminável e pungente monólogo sobre o quão insuportável tudo é, e a sua frieza perante os dois é alarmante. Já Chantelle (Michele Austin), a sua irmã mais nova, é o exato oposto, uma vez que prefere encarar a vida com leveza e alegria, juntamente com as suas joviais filhas Kayla (Ani Nelson) e Aleisha (Sophia Brown), mostrando compaixão e empatia perante as intrigas contadas pelas suas clientes no salão onde trabalha como cabeleireira. Certo dia, Chantelle incentiva Pansy a visitar o túmulo da mãe, o que desencadeia controvérsias entre as irmãs e a família, enquanto se reflete sobre o impacto da angústia de Pansy nos seus entes queridos, obrigando-os a enfrentar verdades difíceis.
Com situações hilariantes circundado Pansy na primeira metade do filme, instantes corriqueiros do dia-a-dia de Chantelle e as filhas que trazem imenso conforto e momentos de pura desolação entre a família, Hard Truths resulta num filme maravilhoso e insofrível, em paralelo. A simples convivência silenciosa entre as personagens, repleta de trocas de olhares intensas e reflexivas, carrega uma energia tão sufocante e envolvente que não requer quaisquer falas e diálogos.
Pansy é a peça central, mas cada personagem tem o seu momento de brilhar e dar sentido à narrativa. Cada interação revela algo de novo sobre si, pelo que cada um traz algo tão humano e cru que nem parece ficcional. Destaca-se o bom humor que Kayla mantém, ainda que a sua carreira esteja em declínio, o otimismo e a contagiante bondade de Chantelle, danificados pelo sofrimento em não conseguir ajudar a sua irmã, a reclusão de Moses no seu próprio mundo, mas secreta vontade de se expressar verdadeiramente, ou a eterna mágoa de Curtley perante a ausência de afeto e complacência da mulher. O contraste entre Chantelle e Pansy, e as respetivas famílias mais próximas, funciona como uma lição de moral em como é possível o amor entre pessoas tão diferentes, mas, em simultâneo, o quanto é impossível ajudar alguém que não se permite ser ajudado e demonstra tudo menos amor a quem o socorre.
É necessário pronunciar Hard Truths como um dos melhores filmes do ano, em especial devido ao seu extraordinário elenco, sendo impossível não destacar a atuação de Marianne Jean-Baptiste como uma das melhores dos últimos tempos no cinema. No seu doloroso desejo em ser vista e ouvida, em coexistência com a desesperada necessidade de estar sozinha, a atriz traz uma profundidade emocional que torna a visualização do filme numa experiência absolutamente imersiva. A sua performance é uma autêntica aula de atuação, mostrando um pleno controlo sobre si própria, com a capacidade de criar os momentos mais cómicos do filme, bem como os mais deprimentes. Também o restante elenco que compõe a família da personagem principal se revela sensacional, sendo cada um vital para o desenrolar da narrativa, ainda que vários apareçam de um modo mais superficial. A sua presença magnética é suficiente para permitir que as personagens sejam multidimensionais e muito bem exploradas, ainda que pouco seja explicitamente dito sobre elas.
Hard Truths retrata a depressão, ansiedade e a angústia de um modo diferente do usual, ao permitir não só um aprofundamento na psique de Pansy e uma tentativa de entender os motivos da sua tumultuosa misantropia, mas também uma reflexão sobre como alguém simplesmente não muda de um dia para o outro e o impacto e extensão de um determinado estado de espírito entre pessoas. Um filme inferior iria julgar uma mulher como Pansy e tentar resolvê-la, em busca de um final feliz. Contudo, a vida não equivale a um conto de fadas, e, ao invés, Mike Leigh deixa a fantasia de parte e força a audiência a resignar-se ao irresolúvel e à frígida realidade.
À luz dos traumas ocultos e nunca totalmente explícitos no filme, talvez a personagem de Pansy denote algo mais significativo que nunca, servindo como uma metáfora para a sociedade em geral, fragmentada por crises sucessivas como o Brexit, ou, tal como vagamente mencionado em Hard Truths, o Covid-19. Por vezes parece que enquanto comunidade nos esquecemos do quão prejudicial a pandemia foi para as nossas habilidades sociais e convivência, bem como para a forma como vemos as doenças atualmente. Pansy raramente sai de casa, tem uma necessidade neurótica de limpeza e ódio pela sujidade, antagoniza estranhos e, talvez, até a morte da sua mãe se possa dever a este vírus.
Hard Truths valoriza as suas personagens, tratando-as como pessoas reais que transcendem meras peças de um filme. Traz uma visão complicada sobre o quotidiano desafio de lidar com os nossos próprios problemas que parecem tão singulares que mais ninguém os compreende, e sobre a nossa incapacidade em ajudar quem não quer ou não consegue ser ajudado. O problema é que Pansy, Chantelle e os restantes familiares são simplesmente as pessoas que são, e não podem ser outras quaisquer.