Crítica | Paraíso (2025)

O turismo, para o bem e para o mal, é neste momento uma das principais fontes da economia portuguesa. As boas condições meteorológicas, as praias, a gastronomia, o custo de vida reduzido e a mão de obra barata, comparativamente a outros países europeus, colocaram o holofote internacional neste país à beira-mar, agora inundado por nómadas digitais, alojamento local e gentrificação. O que pouca gente sabe é que Portugal já esteve no radar internacional, mas por razões bem mais nobres.

O documentário de Daniel Mota – metade do podcast Os Cinéfilos Que Ninguém Pediu – vem trazer à luz esta revolução musical pouco conhecida do grande público, quando Portugal era visto como um verdadeiro “paraíso” da underground house music por DJs internacionais e ravers. A obra nasceu a partir das filmagens de arquivo reunidas pelos produtores Maria Guedes e João Ervedosa, que apresentam na Rádio Quântica um programa com o mesmo nome do filme, dedicado à música eletrónica.

Entre excertos de filmagens e fotos de arquivo, acompanhamos conversas informais entre DJs, bailarinos e produtores, os tradicionais talking heads. Em vez do uso de voice-over, o filme opta por dar voz aos principais intervenientes do movimento, o que lhe confere mais autenticidade e espontaneidade. Os convidados (entre eles, Rui Vargas, DJ Vibe, Luís Leite, Tó Ricciardi, Jiggy e os Alcântara Dancers) recordam, em conversa, as experiências que marcaram uma geração: desde a mítica festa num castelo em Santa Maria da Feira, onde o público subiu às muralhas para dançar, passando pelo sucesso internacional de “Get Up”, dos Underground Sound of Lisbon, até ao fecho do espaço Alcântara Mar com a música “Esperança”. É impossível não destacar a montagem de Henrique Brazão, que confere a Paraíso uma estrutura narrativa e uma linearidade temporal, ligando as diferentes histórias de várias conversas entre si e juntando-as ao material de arquivo.

Sair à noite nos anos ‘90 era um ato de libertação coletiva, quase revolucionário, onde cada pessoa, independentemente da classe, género, etnia ou orientação sexual, dançava sem medo de ser julgada. O desejo e o prazer, outrora reprimidos, não conheciam limites. O filme evoca a nostalgia de um passado perdido e irrecuperável, surgindo num momento oportuno, em que cada vez mais associações culturais, os verdadeiros palcos da música eletrónica underground, são forçadas a encerrar, vítimas da gentrificação e da construção incessante de hotéis e alojamentos locais. A consolidação da memória coletiva serve então para impor um futuro em que estes espaços são necessários.

Conseguimos também traçar paralelos entre a atualidade e a cultura das raves dos anos ‘90, em que, apesar de um certo ocultismo resultante da ilegalidade das festas após as quatro da manhã e do caráter pejorativo associado à noite, as pessoas percorriam quilómetros, de norte a sul do país para participar nesses encontros. Sem o excesso de exposição do digital, sem outras intenções além da música e movidas por desejos reprimidos por décadas de ditadura, encontravam ali um espaço de comunhão e liberdade total, onde o corpo e o som se tornavam formas de resistência, expressão e pertença. Três décadas depois, essa procura por libertação persiste, mas num contexto em que a exposição digital e a mercantilização da noite transformaram o que antes era subcultura em produto.

Em termos formais, o documentário opta por uma abordagem bastante convencional e segura, limitando-se à alternância entre conversas e imagens de arquivo, o que acaba por saber a pouco, tendo em conta o caráter transgressivo do tema e o próprio conhecimento cinematográfico de Daniel Mota. Além disso, o filme apenas toca superficialmente em certos temas, alguns de âmbito mais amplo, como o contexto sociopolítico ou as comunidades marginalizadas que encontraram nesta cultura uma forma de libertação, e outros mais internamente ligados à noite, como o consumo de drogas (mencionado apenas de passagem) ou as relações que surgiam nesse ambiente, fossem de amizade, amor ou simples prazer.

Paraíso é uma obra que nos eletriza, que desperta a vontade de sair à noite para dançar ao som das músicas que apresenta e que nos recorda o papel fundamental que Portugal teve na construção da identidade da música eletrónica underground. Surge num momento em que a cultura é cada vez mais ameaçada, tal como a liberdade de a viver, o que torna ainda mais evidente a sua urgência.

3.5/5

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