Um bêbado, uma espada falante “super-guerreira”, e uns bruxos da Temu entram na tasca da aldeia. Uns querem espalhar o mal, outros dominar o mundo (ou pelo menos uma aldeia que seja), mas só um é acaba por ser servido, porque só ele sabe o que é o verdadeiro amor… por uma boa garrafa de tinto.
Há filmes que conquistam pelos efeitos especiais de alto orçamento, outros pela história dramática baseada em factos reais… e depois há O Velho e a Espada, um cinema artesanal, que tal como os enchidos da aldeia, pode não ter a forma mais regular, mas tem o melhor sabor, cheio de alma, com a genuinidade e paixão com que foi feito, presente em cada dentada.
Vi-o pela primeira vez no MOTELX em 2024 e, juro, saí da sala com o mesmo brilho nos olhos que tinha quando era miúdo a ver Dragon Ball (1995-2003), a obra que me deu a conhecer tanto as mirabolantes animações japonesas, como as ainda mais loucas dobragens feitas em português. E talvez não seja coincidência, porque afinal, a voz da Espada pertence ao lendário João Loy, o Vegeta de toda uma geração, o príncipe dos “super-guerreiros” e, agora, também o guia espiritual de António ou Tonho (António da Luz), um herói rural de coração puro que bebe mais vinho tinto que o Goku comia feijões mágicos.
Realizado por Fábio Powers, O Velho e a Espada é um verdadeiro hino à imaginação e à paixão de fazer cinema com o que se tem à mão… muito literalmente. O nosso protagonista aqui não tem músculos como o Vegeta, mas tem fígado, e isso já e meio caminho andado para enfrentar qualquer demónio da Beira Baixa. Tonho tropeça numa missão presa entre realidades, a do natural, a do sobrenatural, e a realidade além da ficção, com tanto de alucinante como de alucinogénica. É numa aliança com a Espada, possuída por um demónio, que decide salvar a sua terra perdida dos monstros, demónios e efeitos visuais brilhantemente maus. Este enredo delirante leva o nosso Don Quixote a impressionar, não pelo poder que consegue com a Espada, mas pelo equilíbrio que mantém depois de todo o vinho que vai bebendo, com os olhares atentos e desconfiados dos aldeões desta pequena aldeia em Castelo Branco (terra da qual o realizador é natural), a ser parte importante na diluição da barreira entre ficção e realidade.
Do outro lado do Oceano Atlântico, os estúdios de Hollywood tentam fazer de um copo de água um espetáculo de CGI de milhões que não conta coisa alguma, mas para quê ambicionar efeitos realistas, quando este mundo que Fábio nos apresenta é fantasia no seu estado puro? Ele e a sua equipa transformam a água em vinho através de efeitos práticos hilariantes, performances no limbo entre o cru e o insano, “demónios” de borracha e látex tirados de uma festa de anos de uma criança de 6 anos, acompanhados ainda de maravilhosas criações monstruosas e explosões à Power Rangers feitos pelo próprio realizador e pelas habilidades incríveis do mestre de VFX Jules Spaniard. Todo este espetáculo é construído de forma tão genuinamente cómica, que são as suas limitações que aceleram este filme para o nosso coração mais depressa que uma Zündapp 50cc e se tornam virtudes inigualáveis por qualquer grande produção feita no nosso país.
Claro que nada disto teria o mesmo impacto se não fosse António da Luz, o coração do filme. Há nele uma autenticidade desarmante – o olhar cansado, mas que se arregala perante as situações mais tresloucadas e as garrafas de tinto que o aliciam, o seu humor tão específico e caloroso, e uma entrega total a este seu sonho de “fazer uns filmes”, concretizando-o antes de partir cedo demais deste mundo. Nenhuma produção milionária conseguiria comprar esta camada emocional. Junta-se ainda a ele, nesta incógnita que é a vida, Luís Aleluia, conhecido do programa As Lições do Tonecas (1996-2000), num dos seus últimos papéis, como uma aparição do Fernando, aquele que era uma Pessoa.
A Espada tem mais personalidade do que metade do elenco de muitos filmes de estúdio que vemos nos cinemas, e quando fala, a nostalgia da sua voz faz-nos eriçar os pêlos dos braços, com vontade de nos rirmos hoje, porque amanhã podemos ter cieiro. João Loy, tem esse dom, o de tornar anti-heróis em personagens com um carisma tal, que qualquer palavra que profiram tem tanto de hilariante como de poderoso.
A certa altura percebi que não estava apenas a ver um filme, estava a assistir ao nascimento de uma lenda, repleta de dedicação e sobretudo amor. O cinema, os pequenos gestos do quotidiano rural, as referências insanas do outro lado do planeta, todos são homenageados, mas destaca-se sobretudo a homenagem às pessoas que acreditam que vale a pena criar mundos novos para partilhar com quem nos rodeia. O que podia ser amador aqui transforma-se num estilo único e agradavelmente peculiar, demonstrando que o ridículo, quando feito com paixão e convicção, é uma arte sem igual.
Tudo isso sente-se com o filme, mas ao falar com Fábio Powers, Jules Spaniard, João Frias e também João Loy, algo que tive o prazer de fazer desde essa sessão no MOTELX onde estavam presentes, não podemos deixar de ser contagiados pela sua paixão. São como cientistas loucos a brincar às invenções, mas com um profissionalismo e visão tão enorme quanto a sua criatividade, algo de que o cinema português precisa bastante, conseguindo ser original e divertido, assim conquistando um público que não está habituado a tal. Riem-se com o cinema português, e não dele.
Nesta “noite de copos”, entre The Evil Dead (1981), Ultraman (1966) e O Pátio das Cantigas (1942), encontramos momentos memoráveis, daqueles que vemos no dia, ressacados, incrédulos com o que nos contam que se passou. À sangria mágica destas referências junta-se aquele ingrediente que nos é tão saboroso, o humor, à portuguesa, com improvisos e piadas que não são só boas, são também sobretudo nossas.
Comparando com o que se faz lá fora nos dias de hoje, O Velho e a Espada está para o cinema português como Kung Fury (2015), Psycho Goreman (2020) ou Shaolin Soccer (2001) estão para o cinema indie mundial: uma carta de amor ao absurdo, ao “fazer porque se ama”, à alegria pura de contar histórias maiores do que a vida. O Velho e a Espada é o equivalente cinematográfico a encontrar uma espada mágica de uma lenda que não tinha sido ainda contada, cravada numa pedra feita em esferovite, e que no seu libertar, chamas de fogo pixelizado espalham algo verdadeiramente inesperado, hilário e, de alguma forma, profundamente comovente. Num tempo em que o cinema supostamente se quer cada vez mais polido, controlado por estudos do mercado e cifrões em contas bancárias, é libertador ver um filme que celebra o erro, a falha, o improviso, o espírito do rural e o imaginário fantástico sem desculpas nem filtros.
Sem pretensões O Velho e a Espada é algo raro, um assumido filme de Série B, ou melhor, um filme de “Série Beirã”, no seu estado mais puro, orgulhoso da sua loucura e ciente das suas limitações. Para amantes do género, ou simplesmente de originalidade sem filtros, ver algo como esta obra é puro e refrescante. Digo isto com toda a certeza: o cinema português precisa de mais loucos como o Fábio Powers, pois é insano pensar que estas histórias muitas vezes ficam por contar, perdidas numa gaveta, por falta de apoios que incentivem ao arriscar nessa originalidade.