Crítica | O Riso e a Faca (2025)

O Atlântico é uma gigantesca encruzilhada. Por ela atravessaram sabedorias de outras terras que vieram imantadas nos corpos, suportes de memórias e de experiências múltiplas que, lançadas na via do não retorno, da desterritorialização e do despedaçamento cognitivo e identitário, reconstruíram-se no próprio curso, no transe, reinventando a si e o mundo.” Esta análise é dos escritores Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, no seu livro de ensaios Fogo no Mato: a Ciência Encantada das Macumbas (2019). Neste, eles usam exemplos da Grécia e de Roma, dos profetas bíblicos à tradição dos povos indígenas e africanos, para explicar como “as encruzilhadas são lugares de encantamento para todos os povos”: “Gil Vicente, no Auto das Fadas, conta a história da feiticeira Genebra Pereira, que vivia pelas encruzilhadas evocando o poder feminino.” Esta “ideia dos cruzamentos de caminhos” reflete, portanto, tudo o que o mundo pode ser, mesmo que ainda não seja e nunca venha a ser.

Numa análise que tem uma relação mais direta com O Riso e a Faca, vemos no seu texto como esse estado de potência é atacado pelo colonizador, na medida em que este chega para impor a sua particular visão do mundo: “O colonialismo se edificou em detrimento daquilo que foi produzido como sendo o seu outro. A agenda colonial produz a descredibilidade de inúmeras formas de existência e de saber, como também produz a morte, seja ela física, através do extermínio, ou simbólica, através do desvio existencial.” Pois é justamente no rearranjo das infinitas possibilidades que se abriram no pós-colonialismo que a história deste filme se desenrola. O jovem e idealista engenheiro ambiental português Sérgio (Sérgio Coragem) parte de Lisboa para a Guiné-Bissau de carro, numa viagem, sem paragens, que leva cerca de dois dias e meio a percorrer (mais de 4.500km), passando pela Espanha, Marrocos, Saara Ocidental, Mauritânia e Senegal. Sérgio foi contratado para substituir outro profissional, que desapareceu, e produzir um relatório de impacto ambiental para a construção de uma estrada no país.

Durante muitos momentos, contudo, podemos esquecer esse enredo e embarcar na jornada como se fosse um documentário. As três horas e meia de duração são justificadas pela dificuldade de cortar momentos genuínos com não-atores, como depoimentos de moradores locais, em cidades ou tribos que só não vivem totalmente isoladas por já usarem smartphones, a falar o idioma oficial português, ou francês, inglês, crioulo ou alguma das línguas africanas nativas. Assim, o espectador é misturado numa panela multicultural e levado a perder-se nesta viagem antropológica, até à sensação de controlo ser retomada pelo fio central da narrativa: há um relatório que precisa de ser entregue, há pressões por isso, o engenheiro anterior desapareceu e o protagonista não parece ter muita noção dos riscos que corre. Tudo é muito fascinante e assustador, como aquilo que leva ao riso, mas também remete à faca que corta.

O título do filme é o mesmo de uma canção brasileira, O Riso e a Faca (1970), que faz parte da banda sonora do filme. O seu autor, Tom Zé, é um dos artistas que fizeram parte do movimento tropicalista, no final de 1960, no Brasil, que revisitou as ideias antropofágicas que, 40 anos antes, marcaram o movimento modernista. A antropofagia referia que a cultura brasileira é um produto da digestão da cultura exportada por potências como a Europa e os Estados Unidos, misturada com elementos da cultura local e devolvida ao mundo. Essa talvez seja outra chave para entender a imensa diversidade cultural das ex-colónias, passados mais de 50 anos do 25 de abril. A questão cultural é tão cara para o filme que o realizador Pedro Pinho tem o cuidado de evitar que esta temática fique perdida entre debates raciais. Isso fica resolvido logo no início, com a personagem não-binária Gui (Jonathan Guilherme), uma pessoa brasileira em busca das suas raízes mas que acabou por ficar na Guiné-Bissau. Gui pergunta a um guineense o que este vê em Sérgio, e tem como resposta “um homem branco”. Quando pergunta sobre a sua pessoa, a resposta é a mesma. As perguntas continuam, mas a resposta é sempre “branco”. Na encruzilhada do filme, aprofundar a questão racial levaria a mundos completamente diferentes. A estrada escolhida por Pinho, que se não leva ao choque de civilizações, conduz à sua amálgama.

O Riso e a Faca venceu o prémio de Melhor Performance, na secção de Un Certain Regard em Cannes, para a atriz Cleo Diára, que interpreta a vibrante guineense Diára. A química entre ela, Gui e Sérgio, embalada por canções locais, consegue prender a atenção durante todo o filme e transborda verdade. O uso dos nomes dos atores nas suas respetivas personagens reforça o teor documental que a obra exala. Neste sentido, mesmo quando o som parece demasiado baixo ou quando os atores hesitam em dizer alguma fala ou em reagir, os momentos soam autênticos.

Um alerta aos homens portugueses é que pode não ser confortável ver um compatriota numa posição por vezes tão passiva e até ingénua. A inexperiência de Sérgio, desses jovens que “se preocupam com mosquitos e coisas assim” – como diz outro português, a referir-se à própria filha –, chega a render pelo menos quatro sermões que o deixam sem palavras. Sob outra perspetiva, contudo, é também Sérgio para quem todos os caminhos e possibilidades estão abertos, e que ele experimenta sem medo, com gosto pela aventura. A mesma coragem que parece ser necessária para sentar-se hoje diante de uma tela por três horas e meia. Para quem se dispuser a isso, O Riso e a Faca apresenta tantos caminhos que talvez seja daqueles filmes mesmo para se ver mais que uma vez, sempre a descobrir alguma nova camada.

4/5

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