Crítica | Novocaine (2025)

Bergson escreveu que o cómico pede “uma anestesia momentânea do coração”: é preciso suspender a empatia para que o riso aconteça (Le Rire, 1900). Essa chave encaixa em Novocaine: o filme transforma a própria anestesia num mote e brinca com o que o riso revela e encobre.

A proposta é direta: Nate Caine (Jack Quaid, o Hughie Campbel, da série The Boys, 2019-) tem insensibilidade congénita à dor com anidrose (CIPA) e descobre que isso pode ser uma “vantagem” quando a colega por quem se apaixona, Sherry (Amber Midthunder), é raptada por assaltantes mascarados de Pai Natal. A realização é da dupla Dan Berk e Robert Olsen, e o argumento de Lars Jacobson, mas é a montagem de Christian Wagner, e o seu extenso currículo de bons filmes de ação, que sobressai e ajuda a dar ritmo ao caos.

A premissa não é inédita no ecrã. Darkman (1990) apresentou um herói que, após um procedimento experimental, deixou de sentir dor – ainda que por origem adquirida, não congénita. Na TV, um episódio de House (S3E14, Insensitive, 2007) colocou o foco numa paciente com CIPA. No universo Millennium, o vilão Ronald Niedermann, em The Girl Who Played with Fire (2009), é descrito com analgesia congénita. Novocaine diferencia-se menos pela ideia e mais pelo tom de “cinema-pipoca adolescente” que equilibra romance, humor negro e pancadaria cartoonesca.

O início prolonga a apresentação de Nate e a sua química com Sherry; quando a ação arranca (o rapto de Natal), jorra sangue e o filme abraça o cómico ultraviolento explícito. É aí que a “anestesia” bergsoniana entra: quanto mais o filme ri do exagero, mais distância afetiva ele pede do espectador – um efeito que pode divertir uns e cansar outros.

Cansa-me o quanto Hollywood passou a ficar chocado com o sexo e mesmo a nudez, ao longo dos anos, na mesma medida em que a violência se tornou cada vez mais explícita (gore). Há quem acredite que, levada ao extremo improvável do exagero, a violência também seja divertida. Numa entrevista, que circula pela internet, um jovem Stephen King revela a David Lettermann como as cenas mais assustadoras que escreve levam-no a rir.

Noutro vídeo, Quentin Tarantino é confrontado por uma entrevistadora, sobre a correlação da violência nos seus filmes com a da vida real. Ele é enfático a explicar que estes são dois universos totalmente diferentes, e que escreve cenas com tanta violência porque “é muito mais divertido”. Foi nesse conceito de diversão que os filmes de super-heróis se tornaram, nos últimos 20 anos, filmes de guerra para as crianças.

Se restar qualquer trauma, para tudo há remédio. Novocaine é uma marca que virou sinónimo de procaína, anestésico local popularizado no início do século XX – e o sufixo –caine difundiu-se em lidocaína, benzocaína, entre outros. O filme capitaliza dessa bagagem semântica para falar de uma juventude anestesiada: jovens que podem até viver uma grande aventura não planeada, mas que, ainda assim, o que querem mesmo é voltar à segurança da virtualidade, dentro do seu quarto, todas as noites.

O filme não revoluciona a premissa de “e se o herói não sentisse dor?”, mas entrega entretenimento competente ao apostar no paradoxo de um protagonista incapaz de sentir dor num filme que pede que a plateia a ignore – ao menos por duas horas, ainda que boa parte possa estar pronta para fazer isso por muito mais tempo.

3/5

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