O período de quarentena provocada pelo COVID-19 alterou profundamente diversas esferas da sociedade, desde rotinas individuais até estruturas políticas e formas de convivência. Uma das áreas mais afectadas foi o próprio fazer cinematográfico: realizar filmes durante os longos meses de isolamento, com medidas sanitárias rígidas e limitações de contacto, tornou-se um desafio técnico, criativo e emocional. Mesmo agora, com a pandemia sob controlo e uma certa distância em relação àquele momento, obras que revisitam esse trauma colectivo começam a emergir e a reabrir reflexões sobre tudo o que foi vivido. An Unfinished Film, do realizador chinês Lou Ye, é uma dessas produções, evocando o caos, a clausura e a instabilidade daquele período de incertezas.
Não é exagero afirmar que a obra mergulha profundamente na metalinguagem. A narrativa assume a forma de um documentário ficcional que acompanha os bastidores de uma longa-metragem interrompida dez anos antes e retomada no final de 2019, até ser novamente suspensa com o surgimento do COVID-19 no início do ano seguinte. Todos os envolvidos representam versões ficcionalizadas de si próprios, numa construção narrativa que desfoca as fronteiras entre a representação e a realidade. Um dos pontos centrais dessa abordagem é o actor Qin Hao, aqui no papel de Jiang Cheng, protagonista da tal obra inacabada. Colaborador frequente de Lou Ye, Qin esteve presente em filmes como Spring Fever (2009), Mystery(2012) e Shadow Play (2018), dos quais o realizador resgata cenas antigas, exibindo um intérprete visivelmente mais jovem. Ao integrar esse material de arquivo nesta nova filmagem, Lou cria uma sobreposição temporal que intensifica a ambiguidade do que vemos. Essa fusão entre realidade e invenção confere à experiência uma verossimilhança singular, fazendo com que o espectador aceite com naturalidade o tom documental da narrativa.
Nos primeiros minutos, a narrativa concentra-se na descoberta das filmagens perdidas, pela equipa liderada pelo realizador Xiaorui (interpretado por Mao Xiaorui) e na mobilização para reunir os actores originais e reiniciar o projecto. A atmosfera de nostalgia é sentida de forma intensa: apenas pelas imagens resgatadas, o espectador desenvolve curiosidade e liga-se emocionalmente à história esquecida, que gira em torno de um triângulo amoroso entre pessoas do mesmo sexo, delineado com cenas emocionalmente belas e interacções carismáticas entre os protagonistas.
Por trás desta premissa, florescem comentários subtis sobre a realidade sociopolítica chinesa. A potencial retomada da produção enfrenta o risco de censura estatal, sobretudo por conter uma temática LGBTQ+. Embora a homossexualidade não seja ilegal na China desde 2001, qualquer representação positiva de relações entre pessoas do mesmo sexo enfrenta restrições severas: desde 2015, filmes e séries com conteúdos dessa natureza têm sido removidos ou editados pelas autoridades. Além disso, há uma dificuldade em obter financiamento para um projecto com essa natureza tão particular — especialmente considerando que os antigos membros da equipa são agora adultos com rotinas estabilizadas, responsabilidades familiares e preocupações económicas distintas.
Quando tudo parece encaminhar-se para a conclusão e as filmagens da antiga longa-metragem finalmente recomeçam, são novamente interrompidas, desta vez de forma abrupta devido ao surgimento dos primeiros casos de COVID-19 e ao início do confinamento. A maioria dos envolvidos na produção é obrigada a permanecer isolada nos quartos do hotel onde estavam alojados durante as gravações. A sequência que retrata o início da quarentena capta com precisão o caos daquele momento, evocando quase um cenário apocalíptico. A reencenação é extremamente realista, mesclando desespero, confusão e a incompreensão colectiva quanto à gravidade da situação. O resultado é tão convincente que se assemelha a um verdadeiro registo documental daquele período pandémico.
Quando inicia o período de quarentena entre os membros da equipa, que poderia representar um momento de grande intensidade dramática, com mergulhos psicológicos nas vivências de cada personagem, acaba por revelar-se o ponto fraco da obra. O foco recai quase exclusivamente sobre Jiang Cheng, quando teria sido mais interessante — e narrativamente mais dinâmico — explorar um pouco das perspectivas das outras pessoas envolvidas na produção. Essa escolha resulta num ritmo mais lento, repetitivo e, por vezes, monótono. Há também uma quebra no formato do ecrã, com a introdução de imagens gravadas na vertical através de telemóveis, o que pode causar algum ruído visual, sobretudo porque até os momentos mais íntimos anteriormente eram registados com câmaras profissionais.
É evidente que o filme pretende funcionar como um documento sobre esse período difícil que deixou cicatrizes profundas na sociedade contemporânea. No entanto, a dicotomia entre a narrativa e as escolhas estéticas que marcam o antes e o durante do isolamento social acaba por fragmentar a obra, dando a sensação de estarmos a assistir a dois filmes distintos. Até o desfecho do projecto cinematográfico esquecido, que servia de fio condutor inicial, recebe pouca atenção, contribuindo para um final anticlimático e pouco satisfatório.
Apesar da quebra de ritmo na sua parte final, An Unfinished Film oferece uma experiência envolvente de memória colectiva e reflexão sobre questões sociais, artísticas e emocionais. A ambientação convence pela fidelidade com que retrata um período de incertezas e confinamento, apoiada por interpretações contidas mas expressivas, que reforçam a sensação de autenticidade. Lou Ye propõe um olhar íntimo sobre o impacto da pandemia na vida e na arte, questionando o que fica suspenso quando o tempo é interrompido. Mesmo com as suas falhas estruturais, o filme mantém-se como um registo valioso da relação entre criação e realidade em tempos de crise.