Francisca Tinoco

Em A Flor do Buriti, a dupla luso-brasileira João Salaviza e Renée Nader Messora revisitam a comunidade indígena brasileira Krahô do estado nortenho de Tocantins após o filme de 2018, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos. Enquanto este último assumia uma identidade mais individual de coming of age no contexto da sociedade indígena, A Flor do Buriti alarga a esfera temática para incluir ainda mais aspetos da história, identidade e luta do povo Krahô.

Atuando numa estética de docudrama, o filme acompanha três momentos do passado próximo dos Krahô: um massacre perpetrado contra o grupo em 1940 por fazendeiros locais, a criação da Guarda Rural Indígena em 1969 durante a ditadura militar, e a reação e resistência aos mais recentes ataques por parte do governo bolsonarista desde 2019. Apesar de livre e algo amorfa, a narrativa é ancorada nas personagens de Hyjnõ, um membro respeitado da comunidade, Patpro, uma mulher Krahô interessada no movimento pelos direitos dos povos indígenas, e Jotàt, a filha desta última que lida com problemas de sono.

Ainda que a separação entre tempos narrativos seja relativamente intuitiva, a própria estrutura e montagem de A Flor do Buriti procuram desvanecer as linhas entre passado, presente e futuro. Muitas vezes é difícil identificar a que ano pertence dada sequência até largos minutos depois ou, inclusive, até voltar a ver o filme. Esta confusão não só faz sentido tematicamente como enriquece o filme, refletindo, na narrativa, a própria essência, modo de vida e crenças da comunidade que retrata. O passado é algo muito presente no dia a dia dos Krahô, tanto porque a memória é uma faceta integral da resistência contra os invasores brancos, a quem eles chamam de cupe, como porque os antepassados e a sua sabedoria são reverenciados a todo o momento. As insónias de Jotàt, por exemplo, são causadas pela visita de espíritos ancestrais, e Hyjnõ é descendente de uma das únicas sobreviventes do tal massacre de 1940.

Numa sociedade onde a tradição é tudo e a incerteza do futuro é uma preocupação constante, o tempo existe não como uma progressão linear, mas como um emaranhado de dimensões que se influenciam a todo o momento. No seu trabalho, tanto mais eficiente quanto mais direto, contínuo e intenso o contacto com o sujeito da história, Salaviza e Messora reconhecem e utilizam ao máximo o potencial único do cinema para retratar esta vivência tridimensional do tempo.

A fotografia adota um caráter onírico, amplificado pela rodagem à noite, pelo uso de focos de luz, e pela sobreposição de planos. Da mesma forma, os cânticos ritualísticos dos Krahô surgem no filme como uma banda sonora, mas também como um coração pulsante que enaltece o seu espírito resiliente e celebratório.

Por outro lado, ao mesmo tempo que A Flor do Buriti veste esta pele conceptual e metafísica, proporciona, também, um retrato despretensioso e tangível das vidas dos Krahô. Fá-lo através duma abordagem documental observativa de fly on the wall e do recurso a atores não profissionais. Este lado do filme permite ao espectador imergir-se na cultura e costumes desta população durante mais de duas horas, numa perspetiva de privilegiada proximidade e intimidade. Uma posição que, mais uma vez, apenas foi possível graças à relação de respeito mútuo celebrada entre realizadores e Krahô. Aliás, não só esta relação dura já há vários anos, como muitos membros deste povo, para além de contribuírem diante das câmaras, também o fizeram detrás das mesmas, integrando a produção enquanto argumentistas e diretores de fotografia.

O resultado é um filme sincero e cru que posiciona os Krahô não como um objeto de fascínio ou pena, mas como um sujeito ativo na história que contribui diretamente para a sua construção. A natureza viva, maleável e irrestrita do filme traz alguns problemas relacionados com o ritmo, mas a sua importância é mínima comparada com a incrível singularidade de A Flor do Buriti. É um filme político, sim, mas, acima de tudo, é uma comemoração e enfatização da memória coletiva e da diversidade cultural.

4/5

Dìdi (2024)

Crescer é lixado, mas Dìdi entende que, mesmo sendo esta uma observação óbvia, é precisamente a sua universalidade que a torna merecedora de especial atenção.

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