You Resemble Me (2022)

de Pedro Ginja

Somos introduzidos nesta história com um monólogo na voz de uma criança de nome Hasna (Lorenza Grimaudo). Nesse monólogo, é nítida a inexistência de esperança e apenas uma razão para viver – a sua irmã Mariam (Illona Grimaudo) com quem passa a maior parte do seu tempo e a única pessoa que ama no mundo. Quando uma sequência de eventos acaba por separar as irmãs e o resto da família culpa Hasna pelo sucedido, o remorso acaba por precipitar uma transformação profunda ancorada na fé, no desejo de pertencer a algo e de resistência contra a opressão sentida em toda a sua vida. You Resemble Me é a estreia na realização de Dina Amer, com um argumento escrito pela própria em colaboração com Omar Mullick, e teve estreia na 78ª Edição do Festival Internacional de Veneza em Setembro de 2021.

Os temas de radicalização, revolta e polarização da sociedade, continuam relevantes a nível global e bastante sentidos nos subúrbios de Paris onde continuam a habitar milhares de migrantes com péssimas condições de vida. A isso, junta-se um crescendo de ódio e intolerância entre as comunidades muçulmanas, judias e os franceses nativos. Hasna é o rosto, entre tantos outros, escolhido para nos mostrar como a radicalização, fruto da falta de opções, identidade e sentimento de pertença, acontece à vista de todos e sem soluções à vista. Quantas imagens e exemplos de violência chegam até nós, através dos media e imprensa, vindas de França e tendo Paris sempre como campo de batalha?

Dina Amer sabe que para contar de forma fidedigna a história de Hasna, precisa de humanizar o seu sujeito e por isso divide a narrativa em duas partes, a infância conjunta de Hasna e Mariam e o processo de radicalização de Hasna, quando se separa da família e fica isolada da realidade. A infância é um momento feliz do filme graças à naturalidade com que tanto Lorenza como Illona Grimaudo (irmãs na vida real) “vivem” os momentos marcantes da sua infância. Mesmo com tanta pobreza, um pai ausente e uma mãe negligente, há felicidade, há risadas e uma cumplicidade capturada com uma intensidade marcante fruto da edição frenética e do uso de câmaras sempre perto de Hasna e Mariam.

Depois da separação, há uma “metamorfose” em Hasna e o seu alienamento da sociedade é um processo lento mas que reflecte o quão perto dessa mudança todos os jovens desestruturados, filhos de emigrantes, podem estar e assim serem manipulados a tomar a mesma decisão devido ao seu maior desejo de se sentirem vistos – parte de algo. Para reforçar esse sentimento de quão facilmente tudo se poderia repetir agora com outra de tantas mulheres árabes a viver em França, Dina Amer opta por ter três actrizes no papel de Hasna e as mudanças entre elas são sempre imperceptíveis e sem aviso prévio. Umas das actrizes é a própria Dina Amer, cuja face é colocada no corpo de outra actriz através do uso da tecnologia “deep fake”. Para além do simbolismo já referido, é também o mea culpa da própria realizadora perante o seu erro de julgamento ao apelidar Hasna de bombista suicida (como aliás fizeram todos os meios de comunicação social) antes de conhecer a história por detrás de quem era esta mulher. Fruto desse extenso trabalho de jornalismo de investigação, Dina Amer opta por misturar à história ficcionada baseada em factos reais, imagens retiradas da vida real de boletins noticiosos. Combina, também, actores a interpretar personagens, com os próprios intervenientes e familiares de Hasna de uma forma tão realista que deixa ao espectador a hipótese de, ele próprio, fazer o seu julgamento dos acontecimentos experienciados em tempo real. Apesar das suas constantes metamorfoses é em Mouna Soualem que realmente encontramos Hasna com a sua interpretação corajosa e plena de instinto, que lembramos bem depois do filme terminar.

Há inteligência para além do argumento com um trabalho visual audacioso de Omar Mullick, misturando naturalismo reminiscente do documentário de intervenção, com laivos de surrealismo na descoberta do lado nocturno de Hasna como escape da realidade fragmentada que vive todos os dias. Quando esses dois mundos tão antagónicos se cruzam e surge o conflito inevitável, o ritmo de edição altera-se criando um sentimento de urgência no espectador. Todas estas escolhas não são aleatórias e conspiram para nos interrogarmos no que, de facto, aconteceu a Hasna para além de visões simplistas ou maniqueístas reiteradas na imprensa global aquando dos atentados.

Dina Amer apresenta-se ao mundo do cinema com uma realização segura, corajosa e com um sentido de justiça exemplar. É absolutamente claro quão pessoal é a história de Hasna para si e transmite-o ao espectador não como uma lição ou como um branqueamento dos acontecimentos desse dia de 2015 mas como um aviso dos perigos da radicalização e para garantir que outros não caiam na mesma armadilha. Evitar a sua repetição poderá estar, tão-somente, à distância de um braço estendido.

4/5
0 comentário
2

Related News

Deixa Um Comentário