Wolfwalkers está integrado na programação da 23ª edição da MONSTRA | Festival de Animação de Lisboa, na Restrospetiva Cartoon Saloon, cuja sessão ocorre dia 8 de Março às 21h30 no Cinema São Jorge.
“You must do as you’re told. No more fairy tales.”
Os contos de fadas sempre existiram. Antes de uma sociedade alfabetizada; antes da página colorida maravilhar as populações, estas histórias derivadas do folklore eram partilhadas fisicamente através de performances dramáticas ou somente entre conhecidos, familiares, amigos e amantes, sendo derramadas como tinta através de gerações, sobrevivendo pela sua natureza fascinante, sobrenatural, mítica e profundamente emocional, evoluindo constantemente com o conhecimento humano. Os contos de fadas acompanham-nos desde a nossa infância, como lições, conselhos, avisos e aprendizagens embrulhadas num feitiço sentimental que capta a nossa ínfima atenção. Esperançosamente, são histórias que encaminham crianças no seu crescimento individual, além das portas para um desconhecido e assustador mundo. Apesar de serem ocasionalmente reduzidas a finais felizes com mensagens de obediência e conformidade, diversos temas e ideias escondidos no seu subtexto escapavam pela censura e revolucionavam a mentalidade humana.
A conclusão da encantadora trilogia de Folklore Irlandês, criada por Tomm Moore, Wolfwalkers, comprova o grandioso estatuto deste estúdio de cinema de animação independente, Cartoon Saloon, que rivaliza e ultrapassa colossais produtoras com as suas obras criativamente únicas e especiais. Inspirada em diversos mitos folclóricos Irlandeses, esta longa-metragem situa-se em Kilkenny, durante árduos tempos de obliteração ambiental e cultural provocados pelo colonialismo Inglês. Obcecados com a destruição da floresta para expandir o seu território, o Lorde Protector (Simon McBurney) comanda o seu exército para exterminar os lobos que comandam este espaço; dominar os animais selvagens implica dominar esta população. Um dos seus soldados, Bill Goodfellowe (Sean Bean), é encarregue de expulsar a alcateia, um cargo que entusiasma e impele a sua filha, Robyn (Honor Kneafsey), uma curiosa jovem frustrada com o ambiente puritano espalhado por esta figura, a perseguir o seu pai para os bosques e matar um lobo. O fracasso desta missão significa o sucesso de uma inédita amizade com uma Wolfwalker, Mebh (Eva Whittaker), uma estranha rapariga cujo espírito se manifesta num lobo quando o corpo humano adormece. Uma habilidade transmitida acidentalmente para Robyn.
Qualquer ameaça genérica ou derivativa nos seus elementos narrativos ou nas características destas personagens dentro do seu argumento é imediatamente desarmada na sua direção charmosa e enternecedora. Retirando as suas aptidões técnicas e dependendo exclusivamente das suas protagonistas incrivelmente divertidas ou do seu guião profundamente emocional e comovente, capaz de desidratar inteiramente o seu público, Wolfwalkers seria uma das melhores obras de animação desta última década. Ainda assim, Tomm Moore e Ross Stewart, a dupla de realizadores, usufruem deste cosmos artístico para compor imagens singulares, praticamente impossíveis de replicar em live action, beneficiando do seu ambiente cartoonesco para distinguir este mundo, as suas personagens e os seus conceitos, e elevar esta longa-metragem a simplesmente um dos melhores filmes dos últimos anos. Frames absolutamente deslumbrantes na sua constituição espacial outonada, colorida e apaixonante, produzem uma experiência idêntica a um museu de arte histórica transportado pelos sonhos da nossa infância. A animação 2D mesclada com detalhados padrões artísticos Irlandeses iluminam este universo e o seu elenco com uma poesia resplendora, salientando caraterizações visuais: personagens deslocam-se como o vento; lobos entrelaçam-se numa onda cinzenta, representando a sua coletividade honrável e a sua liberdade espiritual que contrasta com os passos dos seres humanos, unidades perdidas na violência, fundidas às chamas de bárbaros. A sua construção geométrica recorda as infinitas possibilidades criativas deste meio da animação, diferenciando as suas figuras e cenários entre círculos e quadrados para capturar a divergência entre duas culturas; a harmonia de um mundo pagão matriarca, conectado à natureza versus uma força puritana patriarca destrutiva que encara o meio ambiente como um território a conquistar.
Simbolicamente, Wolfwalkers elabora uma ponte entre o passado e o presente, refletida na sua concepção audiovisual, espelhada nos backgrounds inacabados, transmitindo uma sensação de desequilíbrio e captando, simultaneamente, o look de fábulas literárias; nos traços a lápis visíveis nestas protagonistas e na vida selvagem que delineiam uma ligação com as nossas origens, presentes nos nossos corpos, e na poderosa banda sonora criada por Bruno Coulais e pela banda de folk music, Kila. Os visuais de Wolfwalkers nunca poderiam pertencer ao mundo vazio do 3D estabelecido nas gigantescas produções de animação, como a Disney ou a Illumination. Seria uma traição do seu background e do seu núcleo narrativo sentimental. Esta conexão com o passado nasce naturalmente da sua história repleta de camadas emocionais e históricas, unificando brilhantemente realidade e ficção, similar aos contos de fadas. Oliver Cromwell, a inspiração para este antagonista, era um líder militar empenhado em exterminar os lobos e os rebeldes Irlandeses que habitavam as florestas; um animal que retrata esta natureza espiritual aventureira, guerreira e comunitária; que representa uma cultura a combater pela sua sobrevivência perante a sua imposta aniquilação. Nenhuma das suas ideias, de uma perspectiva geral, são originais mas é precisamente esse um dos seus pontos principais: séculos passam e o combate pela liberdade persiste no presente; as consequências do colonialismo permanecem na atualidade mundial; figuras tiranas prosseguem na destruição da natureza, do espírito humano e da sua ligação emocional perante o mundo e a sua comunidade. Estas histórias são repetidas precisamente porque continuam necessárias.
Perante uma era vitoriana dedicada a constringir a sua população moralmente, rescrevendo fábulas clássicas com temas de subjugação e conformidade, Charles Dickens protestou, mencionando a importância de respeitar os contos de fadas como histórias para todos. Nunca foram somente para crianças, eram destinadas originalmente para adultos. São os fairytales que movem o mundo pois são estes que comunicam connosco desde o nosso nascimento. As histórias repetem-se desde o início dos tempos transformando apenas a forma como são contadas, talvez por esperança que desta vez a sua audiência consiga realmente ouvir. Este é um feitiço cinemático. O poder de Wolfwalkers está na forma como reflete a magia do cinema de animação como uma evolução da arte dos contos de fadas.