Was Marielle Weiß (2025)

de Rafael Félix

Qual é o maior pesadelo para qualquer pai? Que os filhos saibam quem eles efetivamente são. A operática cena de abertura, que mais parece o primeiro capítulo de uma tragédia grega, de Was Marielle weiß (What Marielle Knows é o título global) é composta pela personagem titular (Laeni Geiseler) a levar um estalo enorme em câmara lenta. Em simultâneo, em diferentes pontos da cidade, a mãe (Julia Jentsch) fuma às escondidas e flirta, bastante explicitamente, com um colega de trabalho; o pai está a ser humilhado e desautorizado por um subordinado durante uma reunião, saindo desta reduzido e de cabeça baixa. Reunida a família em casa ao final do dia, Tobias conta como colocou o colega no lugar dele e Julia pouco diz do seu dia. Porém, graças ao impacto do estalo, Marielle consegue saber que ambos estão a mentir e recorda-os, com detalhe, o que cada um disse e viu durante o dia, e os pais ouvem o que querem e o que não querem ouvir.

A proposta é aterradora. Uma adolescente que consegue saber tudo o que os pais fazem. O que disseram, a quem disseram, com que tom disseram, onde disseram. Vemos esta família aparentemente pacata e aborrecida, um quadro perfeito do aborrecimento e normalidade de uma família de classe-média, desmoronar. What Marielle Knows arrisca-se a ser melhor comédia do ano, assim como a mais desconcertante. Frédéric Hambalek limita-se a colocar alguns grãos de areia no mecanismo bem oleado que é a vida familiar e diverte-se a transformar Marielle numa espécie de Barry Keoghan em The Killing of a Sacred Deer (2015). Um ser omnipresente, e que vamos vendo preencher, num close-up colorido, o ecrã, quase a olhar para a câmara, a julgar os pais que se vão enrolando em mentiras e manipulações, a tentar manter uma ideia de paz podre enquanto as suas traições e falhanços pessoais vão sendo expostos por Marielle, um ao outro.

Aquilo que o filme faz, no meio de todo o seu humor diabólico, é colocar uma pergunta: o quanto é que temos de mentir para manter qualquer tipo de relação estável, seja ela amorosa ou paternal? Nunca poderemos ser tudo aquilo que queremos que os nossos filhos achem que somos. Nunca poderemos ser os parceiros que aparentamos ser aos nossos cônjuges. Estamos condenados, num jogo já de si viciado, a falhar. Aquilo que Hambalek encontrou foi um mecanismo narrativo que expõe o caos por trás das máscaras que colocamos e a precariedade das barreiras que definimos entre a nossa vida pessoal e familiar. Fazemo-lo apenas para sermos livres de representar a personagem que desejamos ser em cada um destes lados da nossa vida, de forma a conseguirmos preencher as expectativas que os outros têm de nós. Partilharmos a casa com um adolescente que tudo sabe sobre ambas é coisa de filme de terror.

A premissa de What Marielle Knows é inserida sem particular cuidado, mas o que faz com ela e tudo o que subtilmente consegue lá enfiar, nuns miraculosos meros 86 minutos, é absolutamente mordaz e hilariante, desde as estratégias dos dois pais para ludibriar o que Marielle efetivamente sabe ou a forma como esta os chantageia com informações sobre a vida um do outro. Estes momentos são filmados de forma tão seca como as falas são entregues, cada momento em família é um aguardar asfixiante sobre uma próxima truth bomb inconveniente, levada ao ridículo com uma banda sonora de tal forma épica que podia ser encontrada nos momentos mais violentos de um filme de Park Chan-wook.

O conceito de What Marielle Knows é explorado até à exaustão e mesmo assim consegue manter-se relevante até ao último frame, pois as performances e o timing humorístico do elenco sustentam toda a narrativa e não permitem que esta, em qualquer momento, deixe de ser séria. Mesmo com todo o humor aqui presente, o novo filme de Frédéric Hambalek é, acima de tudo, sobre a fragilidade das nossas relações, é sobre, como filhos, lidar com o desapontamento dos nossos pais não serem os melhores do mundo e sobre, como pais, lidar com o desapontamento de nunca sermos os melhores pais do mundo. Comédia e tragédia à parte, haverá algo mais universal?

4.5/5
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