Uma experiência quase mortal pode mudar qualquer um. A proximidade da morte e o confronto com a fragilidade da vida são suficientes para redirecionar qualquer caminho ou qualquer carreira, mas ainda assim, com todo o poder que tenha uma vivência deste nível, era difícil de esperar que esta surtisse até o mais pequeno efeito numa das mentes mais impenetráveis, peculiares e macabras do cinema moderno.
Gaspar Noé está de volta depois da sua hemorragia cerebral que quase o tornou na matéria cósmica de Enter the Void (2009), com o seu Vortex: história sobre os últimos dias de um casal, ele (Dario Argento) escritor e ela (Françoise Lebrun) psiquiatra a mostrar sinais graves de demência que rapidamente lhe estão a roubar todas as faculdades e independência.
O psicadélico e epilético estilo de Noé, com o seu excesso e êxtase habitual ficam aqui colocados à margem, para dar lugar a um simples splitscreen que se interpõe entre o casal, transformando-se na representação do fosso que se cria entre duas almas separadas pela decadência do organismo humano. O argentino permite-nos acompanhar a existência dos dois intervenientes em separado, não apenas fisicamente, mas também mentalmente: enquanto ele se enterra e se aliena do mundo à sua volta, nos seus livros e estudos para a construção de um projeto sobre a ligação entre o cinema e os sonhos, ela deambula pela casa ou pelas ruas, umas vezes lúcida, outras vezes perdida e confusa dentro da sua própria cabeça, sempre com um olhar que grita silenciosamente por ajuda.
À semelhança de outros trabalhos de Noé, Vortex é frio e implacável, com esporádicos momentos de ternura, ainda que até estes estejam envoltos em tragédia, mas é um filme que se posiciona friamente na questão sensível sobre a dignidade e autonomia de pessoas a mostrar sinais de demência – questão essa que temos visto cada vez mais abordada ultimamente como em The Father (2020) ou Relic (2020) –; ele tem um caso extraconjugal há mais de 20 anos e nunca deixa de transparecer a sua raiva, a sua frustração e o seu desespero ao longo do declínio mental da sua esposa, mas ainda assim, existe um amor e respeito pela pessoa que acorda ao seu lado todos os dias que vai além da paixão enamorada dos primeiros anos, que se prende muito mais pela admiração recíproca criada por uma vida construída em conjunto. O filho Stéphane, toxicodependente em recuperação, também não é perfeito, e há um tom de matreirice e desonestidade nesta personagem interpretada por Alex Lutz, mas também essa é abafada pela preocupação profunda para com a situação dos pais, que a ele destrói e fragiliza em silêncio por detrás de uma máscara de força e racionalidade, expondo a calamidade que é a transição do filho cuidado para o filho cuidador.
O retrato de Vortex é duro e nada romântico, sem nunca deixar de oferecer um mundo de empatia para quem está deste lado do ecrã como estivesse a dizer “fazemos o melhor que podemos das circunstâncias miseráveis que a vida nos dá”. É quase cruel, é verdade, e as discussões entre Stéphane e o pai sobre o bem-estar da mãe, as tentativas de comunicação constante para tentar encontrar solução para algo que não tem remédio, são gestos de humanidade tal que quando são pontuados por ela com um “quero que se vejam livres de mim”, é como que se todo o mundo ruísse e fossemos obrigados a encarar a ruína inevitável que é o declínio do corpo humano. Porém, esta crueldade tem no seu centro, uma família a tentar fazer de tudo para se manter junta até ao último momento, e será difícil encontrar algo mais simples e honesto que isto na restante filmografia de Noé (por mais extraordinária que esta seja).
Apesar de exigir paciência, e a primeira hora demorar um pouco a arrancar da monotonia em que voluntariamente se instala, Vortex é o trabalho mais maduro e mais terno de Gaspar Noé, com interpretações assombrosas de Dario Argento, Françoise Lebrun e Alex Lutz, e trabalho de câmara incrivelmente exigente conceptualmente mas utilizado de forma simplista e subtil para dar vida aos últimos dias de um casal separado pela fragilidade da vida, sem nunca deixa de lutar para segurar o derradeiro fio de amor que os une um ao outro.
Noé dedica o filme a “todos aqueles que têm o cérebro decomposto antes do coração”. E a eles não desiludiu.