E se de repente todos os estranhos com que te cruzasses te começassem a agredir sem aviso prévio? Um mero olhar na sua direcção e uma avalanche de raiva, pura e dura, é descarregada sobre ti sem razão aparente. Este é a premissa do último filme de Stéphan Castang, a partir de um argumento de Mathieu Naert. Vincent Doit Mourir (Vincent Tem de Morrer), acompanha Vincent Borel (Karim Leklou), um editor de vídeo a trabalhar numa pequena empresa de publicidade. Nada na sua vida é mais do que mediano, até que uma piada mal interpretada parece despoletar um acumular de episódios de violência gratuita sem grandes explicações.
É curioso como a história inicia no local onde passamos mais tempo da nossa vida, o trabalho, e como se aproveita do seu ambiente de constante ansiedade para introduzir o nosso protagonista. No início há uma prevalência do humor negro e procura-se explorar, ao máximo, o ridículo das várias situações de extrema violência. Há sempre uma explicação para os “coitados” que de repente decidem agredir Vincent em episódios de absoluto descontrolo e violência. O ambiente de comédia parece ser o escolhido mas com a saída para o exterior e com o aumento de situações insólitas, o argumento toma a opção de dar maior ênfase ao terror. É o próprio Vincent que toma esta decisão com a mudança de atitude. O seu olhar sofre uma metamorfose quando, num momento chave, se apercebe que é o seu olhar o problema. Karim Leklou expressa a partir daí medo e uma crescente ansiedade em despertar atenções indesejadas. É graças às suas constantes hesitações no olhar e à sua linguagem corporal que o consegue transmitir com um poder difícil de descrever, e enquanto ele progressivamente se isola e desespera por uma solução, também o seu range emocional se materializa, em todo o seu esplendor, perante os nossos olhos.
Stéphan Castang não acha que dois géneros diferentes sejam suficientes e adiciona ainda o romance à história com a introdução de Margaux, interpretada por Vimala Pons, como empregada de mesa que parece imune ao seu problema. Há uma clara química entre ambos e as cenas entre os dois são emotivas e de grande impacto, mas a mudança brusca de prioridades prejudica o equilíbrio da narrativa. A inclusão de outras sub-histórias, entretanto adicionadas de personagens secundárias, acaba por retirar, ainda mais, a atenção de Vincent, com o qual o espectador já tinha criado uma relação de grande proximidade. Algumas situações são de tal maneira similares às constantes microagressões e pressão a que todos estamos sujeitos no nosso dia-a-dia, que nos leva a pensar no quão perto poderemos, também nós, “perder” o controlo. O facto do cão de Vincent, de nome Sultão, ser a personagem mais sensata e ponderada em todo o filme, leva-nos a questionar se não somos nós, Humanos, os animais irracionais no fim de contas.
As influências visuais e sonoras do realizador têm os alicerces nos grandes mestres do terror, desde os filmes de zombies de George Romero, aos ambientes sonoros de John Carpenter ou no cinema de Buñuel e, curiosamente, inspirações visuais de cenas icónicas de Jean-Luc Godard, como o próprio afirmou diversas vezes em entrevista, mas a isso acrescento o humor negro patente em Shaun of the Dead (2004) e a estrutura do argumento a beber muito de Invasion of the Body Snatchers (1978). Apesar das inúmeras referências de Stéphan Castang para realizar este filme, é ainda possível vislumbrar uma identidade própria pouco vista no terror mundial actual e por isso muito bem-vinda para os fãs do género.
Com o aproximar do final, as situações inusitadas de extrema violência começam a escalar em termos de complexidade e crueldade mas, infelizmente, perde-se o delicioso humor negro, um dos seus pontos mais fortes, e a vontade de correr riscos que o argumento parecia querer abraçar. Acaba por cair numa espiral de soluções para o futuro de Vincent e resoluções lógicas para todas as personagens, uma decisão compreensível, mas Vincent Doit Mourir merecia uma conclusão mais condizente com o ambiente criado de caos e violência gratuita. Poderá não ser perfeito, mas a estreia em longas-metragens de Stéphan Castang augura um futuro promissor para o realizador.