Vilarinho das Furnas (1971)

de Bruno Sant'Anna

Localizada entre a serra do Gerês e da Amarela, num ponto próximo da fronteira entre Portugal e Espanha, Vilarinho da Furna é uma aldeia que se encontra inundada desde 1971. Atualmente, tornou-se num ponto turístico inusitado devido às suas construções submergidas. Qualquer pesquisa sobre este espaço resulta em várias publicações que exaltam esse fascínio em relação às ruínas deste lugar, mas não ao que ele um dia foi. Vilarinho da Furna era uma aldeia comunitária que enfrentava problemas graves económicos, negligenciada pelo governo ditatorial militar português, que adotou, assim, uma forma de organização social em que os próprios habitantes se reuniam para debater e resolver problemas locais. Além disso, adotaram um sistema de vida comunitário pastoril, onde produziam tudo o que consumiam para vencer as deficientes condições de subsistência.

Antes de ser morta pela água que a viu nascer, o cineasta António Campos acompanhou e documentou a rotina da aldeia durante os 18 últimos meses da sua existência. É válido apontar que Campos não encontrou um ambiente muito amigável na sua chegada, já que, previamente, a companhia elétrica responsável pela barragem também capturou vídeos comerciais neste lugar, cujos resultados foram desagradáveis para os moradores. Mesmo com essa animosidade inicial, o realizador imergiu no corpo social desta comunidade e conseguiu não só captar os seus costumes e organização, mas a sua alma, resultando na longa-metragem documental Vilarinho das Furnas.

O realizador desempenhou todas as funções sozinho durante a produção da película, uma prática constante nos seus filmes que tornou o seu nome numa referência no cinema português de margem. Mesmo se desconsiderássemos essa importante informação, o resultado desta obra permanece uma de excelência surpreendente. Campos consegue mergulhar o espectador na experiência de viver nesta comunidade, ao retratá-la de uma maneira humana e onírica ao mesmo tempo. Humana, pois consegue selecionar momentos de união e resistência dos habitantes contra a opressão, tanto do governo quanto da igreja cristã, combinados com situações corriqueiras, porém especiais para o povo da aldeia, como a detalhada explicação sobre a produção artesanal de manteiga e as atividades pastorais.

Onírica, pois a fotografia estonteante de Campos consegue captar a natureza local de uma maneira plácida e bela ao construir enquadramentos simetricamente compostos e planos que se expandem no ecrã para expressar a força e a beleza deste Vilarinho. Ainda que existam cenas plasticamente belas, o realizador também disfruta da liberdade do cinema independente para fazer experiências técnicas e narrativas, como o momento em que sobe as escadas de um monumento e deixa a câmara à altura dos pés, para o espectador ter a perspectiva de subir estes degraus com o realizador.

Obviamente que existem problemas quando se tenta exercer todas as funções sozinho com recursos limitados. Em determinados momentos, o som da película é distorcido e os barulhos do ambiente e das vozes das pessoas misturam-se num grande ruído, dificultando o acompanhamento de algumas passagens. Mesmo com este problema, arrisco dizer que a imersão do espectador nunca é prejudicada devido à montagem pragmática de Campos, onde as imagens contam a história tanto quanto a banda sonora.

António Campos é uma pessoa que nasceu para ser cineasta. Ainda com as suas limitações financeiras e o pouco reconhecimento nos seus primeiros trabalhos, Campos persistia em documentar a realidade portuguesa que o governo militar queria que permanecesse invisível, utilizando o seu amadorismo como uma forma de libertação, para revelar os assuntos que achava ser necessários para o conhecimento público. As suas obras documentais seguem a linha do cinema etnográfico e directo, no sentido em que Campos construía retratos sobre a vida em Portugal e tentava fazê-lo da maneira mais fidedigna possível, mesmo consciente que todos os filmes são obras ficcionais e um recorte limitado da vida através da perspectiva do seu realizador.

Vilarinho das Furnas é um documentário que simboliza a excelência do trabalho de António Campos e a riqueza do cinema português. Uma prova de que quando o realizador está de corpo e alma na sua arte, irá produzir um trabalho de importância significativa, e transformar as suas limitações de recursos em ferramentas de liberdade de criação.

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