“Não consegui realizar um filme quando queria – tive de esperar. Décadas. E, para mim, isso foi algo positivo porque tive a oportunidade de trabalhar com homens e mulheres incríveis de diferentes partes do mundo, com estilos de cinema e personalidades diversas”.
– Viggo Mortensen
Na sua segunda incursão como realizador, The Dead Don’t Hurt (Até ao Fim do Mundo, 2023), Mortensen desafia as convenções do western ao colocar no centro da história uma mulher, cuja força reside na sua resiliência emocional e determinação, e não em feitos heroicos ou privilégios sociais. Para além de realizar, Mortensen assina o argumento, a produção, a banda sonora e ainda protagoniza a obra, evidenciando a sua visão multifacetada e o domínio completo sobre a narrativa. Filmado nas imponentes paisagens de Durango, no México, o filme homenageia a estética dos westerns clássicos, enquanto propõe uma abordagem subversiva do género. Entre os desfiladeiros erodidos e as vastidões indomáveis do Nevada do século XIX, emerge um retrato íntimo e inovador de amor e sobrevivência, refletindo a sensibilidade de Mortensen para o cinema de autor.
The Dead Don’t Hurt é uma história de amor singular, protagonizada por Vivienne Le Coudy (Vicky Krieps), uma florista franco-canadiana, e Holger Olsen (Viggo Mortensen), um carpinteiro dinamarquês. O casal de imigrantes, que se conhece em São Francisco, decide mudar-se para uma cidade remota no Nevada, em busca de um novo começo. No entanto, a Guerra Civil interrompe a sua felicidade quando Holger sente o dever moral de se alistar para lutar, enquanto Vivienne vê-se obrigada a enfrentar a consequente solidão e a perseguição de um homem poderoso. Misturando a crueldade do western com uma abordagem sensível, o filme foca-se na luta de Vivienne pela preservação da sua independência num mundo implacável e violento, dominado por homens.
Para garantir coerência histórica, Mortensen e a sua equipa realizaram um extenso trabalho de pesquisa, incorporando com precisão as complexidades e as nuances deste período, mas sem comprometer a narrativa emocional.
Desde a infância, Mortensen teve uma ligação profunda com o western, um género que marcou a sua juventude, e que ele observava com particular atenção no ecrã. A experiência de montar a cavalo desde tenra idade, aliada à sua atenção meticulosa aos detalhes das interpretações nestes filmes — como a forma como os atores cavalgavam — reflete-se agora no seu mais recente trabalho. No entanto, The Dead Don’t Hurt vai além de uma simples homenagem aos westerns: a sua intenção foi criar um filme que mantivesse as características do género, mas que ao mesmo tempo o subvertesse, colocando no centro da narrativa uma mulher, cuja luta pela sobrevivência emocional num mundo masculino é o verdadeiro coração da história. Assim é deslocado o foco, frequentemente apontado para a ação do homem dentro do género, para dar voz àquela que, normalmente, ficaria à margem da história.
Vivienne é uma personagem fortemente inspirada na mãe de Mortensen, uma mulher que descreve como curiosa, aventureira e resiliente. A força de Vivienne não se encontra na violência, mas no seu carácter e na maneira como enfrenta os obstáculos e o inevitável sofrimento. Ao optar por este contexto temporal, Mortensen procurou explorar a complexidade de seguir uma personagem com essas qualidades numa época marcada pela escassa aplicação da lei, geralmente nas mãos de homens poderosos e violentos.
Inicialmente, Mortensen não tinha intenções de interpretar o protagonista masculino, no entanto, quando o ator previamente escolhido abandonou o projeto, assumiu o papel por necessidade, associada ao apertado calendário de produção. Embora conciliar a realização e a atuação tenha sido um trabalho exaustivo, o cineasta encontrou gratificação neste processo, observando que, como realizador, se tornava um ator mais eficiente, voltando a sua atenção para os outros e os detalhes de cada cena. O desafio foi igualmente equilibrado pelo prazer e diversão em contracenar com Krieps, a quem comparou a Meryl Streep, pela sua intensidade emocional e presença marcante.
A estrutura não linear do filme, que inicia in media res, trouxe uma camada adicional de complexidade ao projeto. A decisão deliberada de jogar com a temporalidade permite, aos olhos do realizador, uma exploração mais subtil das personagens, imergindo o espectador no seu mundo emocional de forma única e conferindo ao desfecho um peso renovado.
Apesar da paixão que impulsionou o projeto, Mortensen reconheceu as dificuldades enfrentadas na produção, particularmente no que diz respeito ao financiamento. Ele lamentou a crescente invisibilidade do cinema independente, afirmando que, mesmo quando os filmes são bem recebidos, é difícil recuperar o investimento ou obter o reconhecimento merecido. Além disso, destacou a falta de campanhas robustas para valorizar performances excecionais nestas produções, como a de Vicky Krieps neste filme ou a de Lance Henriksen, no seu trabalho anterior, Falling (Um Homem Só, 2020).
“Tenho a certeza de que havia muitas, muitos milhares de mulheres como a Vivienne naquela época, simplesmente não tivemos acesso às suas histórias, por causa dos jornalistas, dos romancistas.”
Para Mortensen, The Dead Don’t Hurt é uma tentativa de recuperar histórias negligenciadas e criar algo com significado emocional e histórico. O realizador destaca que este não é um western convencional, repleto de tiroteios e vingança, mas sim uma obra que explora temas como a perseverança, escolhas morais e força emocional. A sua abordagem colaborativa e sensível resulta numa obra que respeita as raízes do western, enquanto aponta para um futuro mais inclusivo e reflexivo no cinema.
The Dead Don’t Hurt estreou mundialmente no Festival Internacional de Cinema de Toronto, em setembro de 2023 e, em Portugal, foi apresentado em antestreia na 18ª edição do Leffest – Lisboa Film Festival, a 16 de novembro de 2024. O filme chega às salas de cinema de todo o país a 28 de novembro.