A cumplicidade entre Sofia Marques e Luís Miguel Cintra é grande. Nota-se na sua postura em palco no auditório do Museu Serralves, enquanto respondem a questões sobre Verdade ou Consequência?, o documentário da realizadora sobre o ator e a arte do teatro e da representação, e nota-se também em cada plano e sequência do mesmo.
Para realizar um retrato tão íntimo e vulnerável como Verdade ou Consequência?, esta proximidade é essencial. Claro está que o sujeito que Sofia Marques elege é, já de si, uma fonte quase inesgotável de sabedoria e criatividade, que faria boa figura em qualquer reportagem. No entanto, a realizadora vai mais além do que uma simples captura da visão de Cintra sobre o mundo ou um repasso da sua vida e carreira, usando ambos apenas como pontos de partida para uma exploração fascinante sobre o teatro enquanto arte, tanto de uma perspetiva geral, como dentro do contexto particular e peculiar de Portugal.
Ao longo do filme, e à medida que vemos Cintra encenar duas peças, ou assistir a gravações e fotografias de trabalhos passados, por si encenados ou protagonizados, somos relembrados do caráter construído da representação, do teatro e do cinema. O próprio filme, apesar de se encaixar principalmente numa categoria de documentário observacional, chama constantemente a atenção para a sua artificialidade enquanto produção artística, expondo, por exemplo, momentos de preparação em que realizadora e sujeito discutem enquadramentos e luz. Posiciona o espectador enquanto observador de outra observação qualquer que decorre dentro da tela, ou da captura de uma encenação, e raramente da encenação em si.
A partir de Cintra e do seu variado trabalho em todas as facetas da arte do teatro e do cinema, Sofia Marques cria uma carta de amor a estas e aos seus grandes impulsionadores. Entre eles, está Manoel de Oliveira, com quem Cintra partilhou uma das mais prósperas relações colaborativas do cinema português. Pelo meio, há também referências a Marilyn Monroe e a Cristina Reis, a eterna companheira de Cintra, e a Jorge Silva Melo na gerência da companhia fundada por ambos, Teatro Cornucópia.
Talvez o segundo elemento-chave deVerdade ou Consequência? seja o espaço. Sofia Marques apoia-se em todos os locais de importância na vida de Cintra para contar a sua história. Madrid e Porto são destacados com longas narrações do ator e encenador sobre o significado que cada cidade tem para si. Descreve a capital espanhola como uma cidade que conhece e desconhece ao mesmo tempo, que lhe pertence e lhe foge, “alheia sendo minha”. Nasceu lá, a 29 de abril de 1949, mas é no Porto que agora vive. Terra que diz ser um “microcosmos”, onde pessoas de todas as classes se misturam de uma forma que não acontece noutros espaços. Propícia, por isso, a uma energia única que alimenta a imaginação.
Apesar de adotar uma estrutura não linear, que pretende representar a vida como ela é – sem ordem determinada, ou relações óbvias de causa-efeito – Sofia Marques consegue construir um documentário com cabeça, tronco e membros. Verdade ou Consequência? é altamente interpretativo e aberto – não fecha em si a imagem de Luís Miguel Cintra enquanto pessoa e profissional, criando, ao invés, ferramentas para o espectador criar a sua opinião subjetiva. Ainda assim, o filme nunca perde a sua visão e proposta conceitual – a vida de um homem contada através dos lugares que habitou e das suas paixões, sendo o teatro a maior de todas.
“Fico desconsolado com a meia tinta, e as pessoas que não têm coragem de ser aquilo que são.” diz, a certa altura, Luís Miguel Cintra. O documentário de Sofia Marques não só reflete perfeitamente este lado do ator/encenador como é, ele próprio, seguro de si mesmo. Luís Miguel Cintra faz, em 2023, 50 anos de carreira, e o filme de Sofia Marques permanecerá como uma homenagem devida e apropriada a uma brilhante personalidade do mundo do espetáculo.