O Fio Condutor acompanhou na primeira pessoa a 78ª Edição do Festival Internacional de Veneza por onde passaram alguns dos melhores filmes do ano, concorrentes sérios à temporada de prémios que se avizinha, as maiores estrelas do cinema mundial e também algumas desilusões inesperadas. Vejamos então os destaques do festival que decorreu entre 1 e 12 de Setembro.
O MELHOR
Spencer
O novo filme de Pablo Larraín vê o realizador voltar ao formato biopic com um dos melhores trabalhos da sua carreira. A performance extraordinária de Kristen Stewart neste conto-de-fadas pintado de melancolia sobre o Natal de 91’ da Princesa Diana eleva-se ao estatuto de um dos melhores filmes do género da última década porque, tal como Jackie, reinventa o formato, trazendo nova vida a uma história que embora já conheçamos o resultado final nunca deixa de ser surpreendente, ambígua, desesperante e, a espaços, tragicamente terna. A fábula de uma mulher perdida num reino no qual é uma estranha que apenas quer regressar a casa. Spencer é isto e é absolutamente belíssimo.
Captain Volkonogov Escaped
Realizado por Alexey Chupov e Natalya Merkulova, este filme centrado nos crimes cometidos pela União Soviética sob o comando de Estaline é uma verdadeira jornada através do poder da penitência e a estranha força do medo espiritual ao seguimos a caminhada do capitão Fyodor Volkonogov à procura de perdão pelas atrocidades que perpetuou em nome o Estado. O trabalho de Yuriy Borisov na personagem titular é brilhante e a pedra angular que suporta um guião espantoso também escrito pelos dois realizadores em colaboração com Mart Taniel. Um filme que capta a atenção desde o primeiro e frenético minuto e que levanta dilemas morais interessantes sem nunca se preocupar em dar-lhes resposta.
A DESILUSÃO
Dune
Talvez o filme mais antecipado e talvez também por isso o mais fácil de cair nesta categoria, Dune revelou-se um espetáculo bonito, mas oco e incompleto, que falhou em oferecer personagens interessantes ou uma história sobre a qual quiséssemos ver a segunda parte, o que se torna mais grave quando esta primeira parte claramente não foi desenhada para conseguir funcionar sozinha. Quem quiser encontrar uma ligação emocional a este épico terá de o fazer meramente com uso da monstruosidade sensorial que é esta adaptação da obra de Frank Herbert pela mão do super-talentoso Denis Villeneuve, que aqui, como já aconteceu com outros realizadores antes dele, se viu vítima de uma obra que talvez seja impossível de trazer ao ecrã sobre o formato de longa-metragem. Longe de ser um mau filme, é verdade, mas mais frustrante do que emocionante.
The Card Counter
O sucessor de First Reformed (2018) encontra um Paul Schrader sem novas ideias num filme que não tem muito para dizer e em que estética quase anárquica de The Card Counter entra em conflito com uma narrativa que é passiva e contemplativa – quando não é aborrecida –, criando uma espécie de desconexão entre o que se passa com os seus intervenientes e aquilo que o realizador injeta no aspeto visual do filme. Ainda que com performances razoáveis, especialmente de Oscar Isaac que raramente dá um passo em falso, é um dos filmes mais descartáveis e desinspirados que passou por Veneza, o que não deixa de ser uma desilusão vindo de um dos mais interessantes argumentistas das últimas décadas.
A SURPRESA
True Things
Realizado por Harry Wootliff e com produção e a atuação de Ruth Wilson, True Things é um relato honesto e com nuance de uma relação disfuncional entre a personagem de Wilson e de Tom Burke – ambos fenomenais nos respetivos papéis – e mostrou-se diferenciado num género já tão saturado de intervenientes unidimensionais e melodrama. Aqui vemos um guião que não se preocupa em escolher lados e pinta este relacionamento com tremenda franqueza: feito de duas pessoas imperfeitas e tantas vezes tóxicas, com avanços e recuos, decisões voláteis e ternura em partes iguais à melancolia. Também tem uma personagem feminina tratada de uma forma menos habitual: quase na casa dos 40, um tanto ou quanto desleixada, irresponsável e desesperadamente à procura de algo ou alguém que preencha o vazio de afeto na sua vida. Embora esta descrição seja aplicável a muitas mulheres que enchem comédias-românticas, aquilo que diferencia o guião de Wootliff é o facto de não romantizar esta situação. Pelo contrário, a realizadora constrói uma personagem que é tóxica e problemática, mas que nunca deixa de ser carismática e merecedora do final feliz que procura por causa disso. O reencontro com o amor-próprio é a jornada de Ruth Wilson e True Things é um verdadeiro testamento a isso mesmo.
Freaks Out
O filme mais caro da história do cinema italiano é uma homenagem aos desajustados através daquilo que pode ser um dos melhores trabalhos produzidos pela MARVEL mas que na verdade não foi produzido pela MARVEL. Freaks Out é uma espécie de X-Men italianos em que um bando de artistas de circo com habilidades extra-humanas se vê envolvido com a resistência ao regime Nazi dos anos 40’ em Itália e leva isto o mais longe possível: sequências de batalha gigantescas com efeitos visuais que fariam corar alguns filmes da Marvel ou DC, gore e violência com fartura, boas personagens e tempo muito bem passado, mesmo quando já parece demasiado, porque é inegável que é excessivamente longo. É um blockbuster que merece distribuição fora de Itália e que merece ser visto em ambiente de sala com um valente balde de pipocas e uma quantidade pouco saudável de refrigerante demasiado aguado.