Unfrosted (2024)

de João Iria

Durante o percurso desta longa-metragem desastrosamente empacotada e erradamente etiquetada como comédia, consegui imaginar-me a ler este argumento e a divertir-me com essa leitura. É uma história com piada na página. Uma espécie de paródia de brand biopics que exploram o nascimento de uma famosa marca, como Air (2023), Flamin’ Hot (2023) ou BlackBerry (2023), os dramaticamente absurdos eventos que rodeiam essas narrativas e o conceito ridículo de adicionar perigo sentimental na jornada de uma companhia bilionária a conquistar zeros adicionais. Esta estranha obra do celebrado(?) comediante, Jerry Seinfeld, demonstra ideias genuinamente engraçadas e diversos momentos e falas com uma lógica evidente na construção do seu humor. Contudo, se tem piada na página porque razão é que simplesmente não funciona no ecrã? Porque motivo substituíram as gargalhadas por um intenso silêncio somente preenchido por grilos numa orgia de canções noturnas? Acompanhem este crítico numa dissecção desta defunta comédia.

Unfrosted é um projeto de paixão para o comediante que sempre exibiu uma peculiar obsessão com cereais na sua carreira, incluindo na clássica sitcom, Seinfeld (1989-1998), e nos seus espetáculos de stand-up – admitidamente, Seinfeld dedicou uma década inteira a desenvolver a “piada perfeita sobre Pop-Tarts” para o seu especial 23 Hours to Kill (2020) –. O seu primeiro filme como realizador e protagonista revela as origens da infame Pop-Tart, a salvação da Kelloggs durante a sua colossal guerra contra o seu principal rival de pequeno almoço, a Post. Salvação é uma palavra ilógica para uma companhia que apenas roubou esta ideia da sua competição sem qualquer forma de perigo avistado para o seu nome ou estatuto financeiro. É o mesmo que chamar Jerry Seinfeld de realizador, simplesmente não faz sentido. Aliás, esta é uma das suas predominantes adversidades pois como realizador, Seinfeld é equivalente a um apêndice. Está lá mas não faz nada. Curiosamente, a sua identidade cinemática é reminiscente de Bee Movie (2007), cujo enredo foi originado por esta antiga estrela de televisão. Acredito que o humor dessa longa-metragem funciona devido ao meio da animação que permite elaborar um mundo intensificado, absurdo e cartoonish, adequado para a comédia limpa e observadora de Seinfeld – ninguém protesta contra o romance entre uma abelha e um ser humano, faz parte da piada –. As suas sensibilidades destacam-se em sitcoms e cartoons. Para o cinema live action é essencial um artista visionário que consiga estabelecer uma set up para a punchline do comediante. Invés, este é o resultado. Unfrosted é puramente bizarro nas suas ideias, e visualmente similar a um sketch de comédia que perdura além do seu prazo de validade. Uma coleção de anedotas que Seinfeld destemidamente reuniu ao longo da sua carreira acerca de pequeno almoço. Só porque é estruturado como uma paródia não implica que funcione como uma (apesar das suas aptidões como ator encaixarem perfeitamente numa paródia). Crianças de classe média à procura de comida em caixotes do lixo soa engraçado na sua voz mas nas suas mãos sobressai meramente como confuso.

O seu propósito, como mencionou numa entrevista, é somente fazer a sua audiência rir. Existe um elemento honrável neste objetivo; a intenção de criar simples entretenimento nunca deve ser utilizado como uma mancha na sua criação. Uma piada não carece de uma equipa de cientistas responsáveis para ser engraçada. Basta ser. Consequentemente, ignoramos os elementos técnicos desta longa-metragem, cujo sabor recorda uma taça de Corn Flakes da Kelloggs: genérico, e colocamos o foco no humor. Infelizmente, os momentos divertidos são esporádicos, espalhados em pequenas piadas criativas como uma cena que envolve um espião e uma esfregona. Hugh Grant e Christian Slater destacam-se na comédia (ironicamente, os únicos actores não comediantes): o charmoso ator britânico na sua representação de um artista shakespereano limitado a ser uma mascote; Slater como um homem do leite sociopata. Um cameo surpresa é capaz de suscitar sorrisos do seu público, no meu caso apenas resultou numa vontade de emular o Will Smith na cerimónia dos Oscars: “Get my Mad Men out of your fucking mouth!”. Spoilers? Importa? É o Unfrosted. Ninguém quer saber. O restante elenco é preenchido por inúmeras celebridades e figuras populares que decidiram participar nesta produção porque, obviamente, é o Seinfeld. Ele é engraçado. Aliás, era engraçado. Assumo que Larry David tenha ficado com a custódia da comédia no seu divórcio. Ainda assim, ele permanece Seinfeld. Um nome que será sempre associado a um clássico do género. Notavelmente, os atores parecem desfrutar completamente das suas brincadeiras nesta produção, livres de limites impostos por cineastas profissionais, com permissão para comerem o cenário e vomitarem os seus pedaços mal digeridos pelo ecrã. Algum improviso, horas rápidas, planos que impedem o desgaste físico da repetição. Eles divertem-se enquanto eu olho para o meu reflexo marcado por um N gigante e uma arma encostada aos meus dentes. Se a Netflix continuar neste caminho, uma opção adequada seria trocar o seu icónico som por um disparo. Admito algumas gargalhadas, todavia, compensa o consumo? Unfrosted é uma caixa de cartão vazia com promessas coloridas mas nenhum brinde para oferecer. Apenas calorias vazias. Não é suficiente para apanhar diabetes ou sequer sentir o doce da refeição.

Admiro a sua surreal ambição e o seu compromisso perante este inusitado ambiente; é respeitável encontrar um comediante com este estado de popularidade a despenhar-se num enredo que envolve um ravioli senciente e uma equipa estilo NASA a produzir um snack. No entanto, regressamos ao problema principal desta longa-metragem, que reside no humor (e no acting) de Seinfeld. Ele nunca pode ser o alvo da piada. É o responsável. O ridículo é um aparte, é tudo o que ele aponta. O comediante é especialista em retirar detalhes absurdos do nosso mundo. Na sua delivery persiste uma distância, como um líder que não quer realmente saber. Ele importa-se o suficiente para apontar as anomalias da nossa sociedade mas nunca ao ponto de se tornar numa. Naturalmente, este estilo de humor fracassa quando é ele o criador do bizarro. Quando a comédia surge maioritariamente através de personagens a reagirem às decisões disparatadas do próprio filme.

Apesar do seu enredo envolver referências à crise de misseis de Cuba e à Guerra Fria, Seinfeld permanece desinteressado na política destes acontecimentos e nas suas implicações. A sua atração irrompe somente quando esta é acompanhada por uma piada. É estranho assumir uma metáfora para este conceito de duas figuras colossais num insignificante combate por poder ou uma sátira ao capitalismo onde a inovação ocorre somente através de cópias com um nome diferente porque sabemos que nenhum destes aspetos funciona ou sequer é inteiramente intencionado. A procura por significado é completamente em vão pois para o comediante tudo é apenas um motivo para uma piada. É esse o seu único objetivo. Acaba por ser um problema existencial que move Seinfeld na sua carreira. Se não fizeres rir, podes chamar-te de comediante? Evidentemente, esta estrela da televisão sente-se consistentemente motivada a perseguir a piada, seja ela qual for, mas antes sequer de atingirmos os créditos finais de Unfrosted temos uma simples resposta:

Não.

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