Em 2023, tive o prazer de assistir ao documentário Ary (2022), de Daniela Guerra, sobre a história de Ary Zara, trans e pessoa não-binária, e a sua jornada de autoconhecimento enquanto questiona os papéis de género impostos pela sociedade. Agora, escrevo sobre a estreia de Zara na realização com a curta-metragem premiada Um Caroço de Abacate, que consegue ser simples, encantadora, mas, principalmente, devastadora.
A história acompanha uma noite na vida de Larissa (Gaya Medeiros), mulher trans e imigrante brasileira, que vive na cidade portuguesa de Lisboa. Numa noite, depara-se e mostra-se intrigada com Cláudio (Ivo Canelas), homem cis, que dentro do seu carro apenas observa com curiosidade as mulheres trans daquela rua. Ao confrontá-lo, Larissa e Cláudio aproximam-se e passam a noite a conversar. Conforme se vão conhecendo, descobrem também que se estão a conhecer a si.
Numa primeira instância, pode parecer uma espécie de cliché colocar uma mulher trans nesta situação, mas o desenvolvimento da narrativa mostra algo muito mais complexo, nos seus 20 minutos de duração. Aqui, vemos uma personagem que quase sempre é representada no audiovisual como secundária, ou a ser vítima de inúmeras violências, como protagonista de uma história de romance. Ao fazer isso, a obra subverte qualquer tipo de previsibilidade cinematográfica e cria ainda uma sensível e profunda representatividade da comunidade LGBTQIA+.
Ao mesmo tempo, há questões muito viscerais e dolorosas representadas em Um Caroço de Abacate, por ser uma história sobre a marginalização do corpo transgénero e a sua dificuldade em encontrar amor e carinho dentro de uma sociedade preconceituosa. É sobre a comunidade LGBTQIA+ não ter o direito de expressar a sua afetividade de maneira livre, e desenvolver em nós mesmos o sentimento de repressão. É sobre muitas vezes transformar as outras pessoas em experiências sociais para nos tentar conhecer… e também sermos usados/as como experiência social.
Estas questões existenciais são potencializadas pela competência técnica da obra. As atuações de Gaya Medeiros e de Ivo Canelas são brilhantemente naturais, a ponto de quem está a ver o filme sentir-se como quem entra num local sem ser convidado, completamente por dentro daquele momento tão íntimo e bonito entre aquelas duas personagens. A cinematografia e a banda sonora completam a imersão da atmosfera realística, com a câmara e a música a acompanhar sempre Larissa e Cláudio, como se fossemos nós a perseguir estas duas figuras na noite, e a querer ver cada detalhe daquela interação.
Um Caroço de Abacate é um tesouro para todas as pessoas que não se veem representadas no cinema ou não se acham dignas de viver uma história de amor. São obras como estas que têm o poder de transformar uma sociedade opressora e castradora de afetividade num futuro onde o imaginário popular seja mais inclusivo e livre para as pessoas se expressarem sem qualquer medo.
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