Triangle of Sadness (2022)

de Pedro Ginja

Desde Force Majeure (2014) e, confirmado com distinção em The Square (2017), que Ruben Östlund demonstrou ser um provocador por excelência mas também, mais do que isso, um acérrimo crítico do que considera errado na sociedade, sem medo de tornar essa experiência desconfortável para o espectador, ao mostrar-lhe que os que são criticados são, por vezes, muito similares a nós próprios. Detecta-se, principalmente em The Square, um certo pretensiosismo na maneira como cria diálogos pouco realistas ou os intelectualiza em demasia. Tudo é, no entanto, propositado e calibrado para nos interpelar e por isso não foi surpresa quando Triangle of Sadness recebeu a Palme d’Or em Cannes este ano, 5 anos depois da vitória por The Square.

A história deste filme acompanha Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean), dois jovens modelos a bordo de um cruzeiro para multimilionários onde (quase) tudo é permitido. Essa incapacidade da tripulação de dizer não aos pedidos cada vez mais extravagantes dos passageiros cria uma constante tensão e os problemas surgem naturalmente. Durante um “agitado” jantar, oferecido pelo Comandante Thomas Smith (Woody Harrelson), surge o caos e a criação de uma nova ordem em que o instinto de sobrevivência impera, invertendo os poderes e a hierarquia.

É impossível falar de Triângulo da Tristeza (título nacional) sem falar da estrutura do argumento e do ritmo que impõe à história. No prólogo inicial o alvo a abater por Östlund é o mundo da moda, com a introdução dos dois conceitos que a definem actualmente – Alta-Costura e Pronto-a-Vestir, também eles espelhos do nosso mundo actual e da nossa necessidade de estabelecer limites em tudo – mesmo que esses limites sejam invisíveis aos olhos, todos eles estão traçados e quem os ultrapassa ou desafia é alvo de ira e esquecimento pela indústria – “Stay in Your Place” é a palavra de ordem. Em oposição com a sociedade actual, no mundo da passarelle, a mulher é a “rainha” enquanto o homem é usado para “adornar” ou colocado de parte, num patamar inferior.

Este é o momento ideal para conhecer Carl e Yaya numa cena intimista; um jantar romântico em que rapidamente se percebe o estado desta relação. Charlbi mostra uma mulher alheada, ligada ao mundo digital e bem longe daquele restaurante enquanto Harris interpreta um homem com a sua masculinidade ferida de morte, à beira do limite. O que advém daí só pode ser considerado como um monólogo acerca do papel da mulher num mundo pós-movimento #Metoo. Habitual para Östlund, é presunçoso, intelectual e “straight to the point”, e porventura poderá passar por polémico ou pouco realista mas o que faz é introduzir mais uma provocação no espectador ao inverter os habituais papéis masculino/feminino vigentes na sociedade. Tanto Carl como Yaya defendem a sua posição com “unhas e dentes” e só com a verdade encontram a paz, por muito difícil que seja de admitir. Introdução perfeita a este mundo de excessos graças ao talento de Charlbi e Harris e à tenacidade com que se entregam às suas personagens.

E num momento estamos num quarto de hotel como no seguinte aterramos num cruzeiro habitado pelos mais excêntricos milionários, desde empresários de fertilizantes a fabricantes de armas, à realeza europeia ou a magnatas do mundo digital/tecnológico, sem esquecer Carl e Yaya, também eles parte deste mundo onde em cima (literalmente) estão os “ricos e bonitos” e em baixo (escondidos) habitam os “pobres e feios”, cada um na sua bolha alheados da realidade oposta. Destacam-se, dos restantes, Dimitry (Zlatko Buric), empresário russo que se auto-intitula de “Rei da M**da” e Thomas Smith (Woody Harrelson), capitão do navio com um problema de alcoolismo. As contradições estão presentes com Dimitry, capitalista assumido a atacar o comunismo, e com o capitão, oriundo dos E.U.A, um fervoroso anti-capitalista com o comunismo como ideal de vida. Apesar das diferenças formam o elo mais forte de todas as personagens e conseguem os melhores diálogos do argumento ofuscando os demais nos escassos minutos em que partilham o ecrã.

O caos é inevitável e é aqui que Östlund se liberta dos constrangimentos, auto-impostos de controlo deste mundo, e solta um cataclismo de grandes proporções, qual Deus irado com os “pecados” desta sociedade. Não há limites neste “ataque” impiedoso ao navio ou ao desconforto do espectador, uma decisão que acaba por dividir opiniões na sua relevância e bom gosto, quando Östlund apenas pretende mostrar que no caos produzido todos somos iguais – Ricos ou Pobres. No ponto de vista do trabalho de fotografia, é durante os períodos de ostentação deste pequeno mundo, durante um jantar requintado oferecido pelo capitão, e a sua descida vertiginosa a uma total decadência, impossível de conter, que surgem os melhores momentos. Tudo isto graças à mestria técnica de Fredrik Wenzel, habitual colaborador de Östlund, e na sua coragem em não desviar o olhar da câmara dessa dicotomia belo/hediondo.

Tudo caminha na perfeição rumo à conclusão desejada mas é aqui que Östlund falha ao não reconhecer que o objectivo do seu filme está cumprido, perdendo-se num acto final demasiado longo, com ideias rapidamente estabelecidas sobre como os detentores do poder oprimem e controlam os restantes para proveito próprio, sem olhar a meios para manter o status quo. Não é bonito de ver, ouvir ou sentir mas transporta-se a discussão para a vida real após o término do filme, e haverá melhor elogio a este Triangle of Sadness do que esse?

Ruben Östlund, qual Deus omnipotente, leva-nos nesta sua “viagem” pelo mundo dos ricos e poderosos; o caos e ira produzidos são de tal ordem que nem Noé conseguiria salvar “esta sociedade”. Divisivo, desconfortável e, acima de tudo, ciente do que quer mostrar ao espectador, Östlund consegue transformar este retrato do mundo actual numa alegoria de tudo o que está errado nesta sociedade cada vez mais polarizada.

O dia do juízo final está próximo para eles?

4.5/5
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